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CRISE DA RACIONALIDADE, CRISE DA RELIGIÃO

27 set 2012

Paul Valadier sj
Institut Catholique de Paris

Instituto Jacques Maritain do Brasil

Teatro do Pátio do Colégio, São Paulo – 27 de setembro de 2012

Costuma-se situar uma em relação à outra: crise da racionalidade e crise da religião (cristã: é dela que trataremos aqui). Ou, para ser mais exato, a filosofia moderna – ao menos desde a Renascença europeia – geralmente fez da racionalidade ou da razão a fonte e a causa da crise da religião. Nesse sentido, a atitude frequente consiste em pensar a crise da religião como consequência e resultado do aumento da potência da razão, definida tanto como desenvolvimento das racionalidades científicas quanto como razão pura (especulativa) e prática (moral) – para empregar a distinção de Kant. Segundo essa perspectiva, a razão em seu pleno desenvolvimento e segurança abalaria os fundamentos da religião: seja atacando as bases escriturais ou dogmáticas do judaísmo e do cristianismo (cf. Baruch Spinoza ou Richard Simon); seja identificando religião e fanatismo ou obscurantismo (cf. iluminismo francês); seja anunciando o desaparecimento das religiões no horizonte da história, com versões bastante diferentes, segundo Marx (fim da alienação religiosa em vista do Reino da liberdade) ou Nietzsche (desmoronamento do monoteísmo diante de um divino politeísmo ou diante da vitória do niilismo negativo). Todos conhecem a radicalidade tanto da crise modernista na Igreja católica, na virada dos séculos XIX-XX, como da crise dos liberalismos protestantes, contra a qual Karl Barth reagiu com tanta força. Essas crises tinham origens claras numa crítica das racionalidades contra as próprias fontes do cristianismo (novas leituras das Escrituras, fundamentos históricos dos dogmas…). Tal crise é, sem dúvida, inacabada, e talvez sem termo definível ou previsível, tanto as racionalidades em obra se renovam e se diversificam. Assim, o novo papel da linguística, da semântica, da psicanálise na interpretação dos textos renova os termos de uma interrogação que se tornou, sem dúvida, permanente. Contudo, em tal crise, são a razão e as racionalidades renovadas que, em seu desenvolvimento, colocam em perigo o universo da religião, ou ao menos obrigam as religiões a uma espécie de aggiornamento permanente.

Ora, podemos legitimamente nos perguntar se essa figura essencialmente crítica da relação entre razão e religião, entre conhecimento do mundo e aspiração religiosa, entre abordagem racional e abordagem de fé não está desaparecendo, ou ao menos se apagando. Tudo leva a pensar que a crise não atinge somente a esfera religiosa, mas que a razão e as racionalidades a ela vinculadas (nas técnicas e nas ciências ditas naturais ou humanas) entraram, elas próprias, numa crise profunda, mesmo intransponível. Ainda melhor: pergunta-se aqui ou acolá se não seria a religião (institucional) ou a fé (como caminho pessoal) o recurso necessário ou possível ao desmoronamento da razão. Assim, nós assistiríamos a uma reversão da situação em relação à época triunfante do racionalismo, ao ponto que a fé – ou a religião – incitaria a razão a não desesperar de si mesma. Há vinte anos, a Revista Católica Internacional Communio já intitulava seu 100º número: « salvar a razão » (XVII, 2-3, março-junho de 1992). Um programa revelador! Daí a questão: a razão não teria se tornado vítima de suas próprias crises e não seria atacada em suas pretensões e, sem dúvida, mesmo em seu projeto de conhecimento do real?

Tal reversão convida, então, à análise, à reflexão e ao senso crítico: é o que gostaríamos de tentar fazer aqui, propondo algumas reflexões demasiado curtas em relação a este assunto imenso e delicado.

Indícios de uma reversão

Podemos partir de uma situação estranha e paradoxal. São dois papas contemporâneos – primeiramente João Paulo II, na Encíclica Fides et Ratio (1998), e em seguida Bento XVI – que, em textos de grande alcance, convidaram a razão a se mobilizar mais do que tem feito, para afrontar as grandes interrogações às quais a humanidade atual é confrontada. Ambos, com acentos certamente diferentes (o que não é importante para nossa análise), insistiram sobre a importância do trabalho da razão, contra a timidez ou as renúncias que, segundo eles, caracterizam demasiadamente a filosofia atual. Eles não somente incitaram os filósofos e os pensadores em geral a não renunciar à colocação das questões decisivas para o presente e o futuro do homem, mas afirmaram, com força, que a fé não podia esperar nenhum benefício de uma razão fraca, hesitante, marcada pela dúvida e pelo ceticismo; uma fé não provocada por uma razão confiante em si mesma cairia no fideísmo, isto é, numa atitude incapaz de prestar homenagem ao Criador pelo trabalho da inteligência. Não somente o desmoronamento da razão seria um evento temeroso e catastrófico para o próprio homem, mas tal desmoronamento se faria à custa da fé. Daí o apelo convergente dos papas para que a razão se mobilize contra suas próprias tentações de renúncia e para que as pessoas de fé não tenham medo de avançar no terreno das racionalidades diversas para sustentá-las, mobilizá-las, assumi-las em todas suas dimensões. É reveladora esta passagem de João Paulo II: « É ilusório pensar que a fé, frente a uma razão débil, possa ter uma maior força; ao contrário, ela cai no grande perigo de ser reduzida a um mito ou a uma superstição. Do mesmo modo, uma razão que não tenha mais uma fé adulta frente a ela não é estimulada a se interessar à novidade e à radicalidade do ser » (Fides et Ratio, §48). Ao invés de uma rivalidade considerada frequentemente como evidente, esses papas declararam repetidas vezes que « o mundo da razão e o mundo da fé, o mundo da racionalidade secular e o mundo da fé religiosa, precisam um do outro e não devem temer entrar num diálogo profundo e contínuo (ongoing), para o bem de nossa civilização » (cf. Bento XVI em Westminster, em setembro de 2009).

Contrariamente a diversas interpretações, não se trata de opor dois blocos numa espécie de « guerra fria » segundo uma « economia do erro », como pude ler em certas leituras partidárias. Trata-se de uma mobilização – no melhor sentido da palavra – dos recursos humanos, não para defender um território, mas « pelo bem da civilização »; trata-se, então, que fé e razão conjuguem seus esforços ou meçam-nos, uma em relação à outra, para dar sentido a um futuro comum. Nós estamos, então, longe de um jogo de forças no qual a Igreja, por exemplo, defenderia suas posições e no qual a razão se levantaria contra o erro ou o obscurantismo religioso. Nós nos situamos, mais precisamente, diante dos desafios comuns a todos, os quais somente espíritos cegos insistem em ignorar (futuro do planeta, violências de todo tipo em favor do reconhecimento mútuo, perigos dos fundamentalismos – não somente religiosos, mas também racionalistas, nacionalistas ou cientificistas…). Entretanto, essas posições pontificais não poderiam ser interpretadas como « pedidos de socorro »? Fé e razão não estariam em situação difícil, ambas abaladas pela era secular, como o mostrou Charles Taylor recentemente em A Secular Age (2011)? Uma e outra subsistem, mas enfraquecidas, marcadas pela confusão, fora das certezas de outrora, o que afeta tanto as racionalidades quanto a fé. Consequentemente, será que dois enfermos, duas fraquezas, dois doentes podem realmente se ajudar e cooperar, ou somente partilhar sua aflição comum?

A razão enfraquecida: o niilismo

Pode-se reconhecer facilmente que as grandes certezas racionalistas estão amplamente apagadas: de um lado, longe das profecias inspiradas pelo Iluminismo, das quais o marxismo foi o substituto de um modo mais militante e mais visível, religiões e fé não desapareceram do horizonte humano – bem ao contrário –, e isso obriga quem quer que seja lúcido a não desprezar uma permanência que deveria, ao contrário, interrogar, mas – eu voltarei a esse ponto – isso significaria, por tudo o que se diz, uma espécie de « revanche » das religiões sobre a razão? Nós podemos duvidar disso.

De outro lado, experiências históricas dolorosas testemunham que o reino da razão não é isento de violência e de obscurantismo. Os totalitarismos do séc. XX provocaram (provocam ainda na Coreia do Norte ou em outros lugares), ao mesmo tempo, o massacre de populações, a exaustão durável de nações e de povos, o desmoronamento das esperanças políticas, o sufocamento das liberdades; eles mantiveram uma cegueira, aparentada com o obscurantismo, em numerosos intelectuais e responsáveis políticos; e, como sempre, esse obscurantismo, vestido de uma dialética supostamente científica, provocou inúmeros crimes. Eles são, de fato, o fruto de uma razão que se acreditou capaz de « mudar o homem » e de transformar a história, segundo uma perspectiva de tipo prometeico. Com Nietzsche, nós poderíamos afirmar que a vontade de crença que habitava esse racionalismo, essa « vontade de verdade a qualquer preço », resultou num triunfo do deserto humano e espiritual, pois esse grande fogo da Verdade ideológica teria inflamado e destruído numerosas crenças e convicções (A Gaia Ciência, §344). Ainda em termos nietzscheanos, essa vontade de verdade a qualquer preço, que irrigou tanto a irracionalidade política quanto o cientificismo, resulta no desenvolvimento do niilismo: certezas exageradas em relação aos poderes da razão dominadora levaram a uma dúvida mais profunda sobre os poderes dessa mesma razão. Ela não somente não « crê » mais em si mesma, mas chega a se deteriorar através do ceticismo e do gosto bastante perverso pela « desconstrução » sistemática. Tal razão louca descobre-se habitada e inspirada pelo nada e se deteriora na negação de si mesma, segundo a definição do niilismo dada por Nietzsche: a descoberta que sob os valores mais altos, como a verdade e a justiça, escondem-se o nada e a morte; o que era desejado sob o nome de verdade ou de justiça era, de fato, apenas o reino da morte. Nós esperávamos a reconciliação do homem com a natureza e com o homem, mas veio a barbárie. E, com ela, a derrota da razão.

Este terrível diagnóstico pode, além disso, verificar-se no chamado desmembramento da razão:

Por um lado, parece que as racionalidades científicas continuam sua corrida com força e vitalidade notáveis – mas incontroláveis –, como se elas tivessem perdido a finalidade que Francis Bacon lhes havia prescrito: servir à realização da humanidade. Isso pode ser claramente visto no domínio da biologia, mas, talvez sobretudo, em todas as pesquisas em torno dos cyborgs e dos robôs, com o sonho de uma super-humanidade mais ou menos imortal. Aqui, a negação da exceção humana é caracterizada por uma vontade de indiferenciação que nivela a especificidade da espécie, seja em relação ao animal, seja entre sexos, seja em relação à finitude e à morte. Tudo isso pediria mais explicações, mas a tendência à negação da exceção é testemunha desse budismo da confusão anunciado por Nietzsche, no qual nada mais tem valor, pois nada se distingue verdadeiramente. A negação da distinção ignora o fato de que isso conduz ao gregarismo e à indiferenciação, logo ao caos (à morte). No que me diz respeito, eu temo mais o reino do animismo (toda « virtualidade » é respeitável, segundo a fórmula de Martha Nussbaum) do que o do ateísmo, pois o animismo se insinua nas mentes acariciando sua tendência a se identificar com todas as coisas ao invés de se distinguir – o que custa, com efeito, muito mais!

Por outro lado, esse desenvolvimento de racionalidades sem controle, perseguido por si mesmo, sem moratória possível, encontra sua fonte na negação da metafísica. As razões dessa negação são demasiado vastas para serem aqui analisadas. Mas é claro – pode-se tomar esse ponto como um tipo de constatação – que muitos filósofos atuais situam seu trabalho intelectual no postulado do « pós-metafísico ». Postulado geralmente não discutido, considerado evidente depois das críticas de Heidegger, tomando emprestado de Nietzsche (aliás, mal compreendido) esse tema essencial. Ora, o pós-metafísico não coincide somente com a negação de um outro mundo ou de um dualismo de tipo platônico – o que podemos admitir; ele demite todas as questões existenciais que ainda animavam Kant, no que diz respeito ao sentido do destino da pessoa humana e da aventura coletiva dos homens (O que posso saber? O que devo fazer? O que me é permitido esperar?). Ele se nega até a formular essas questões, para se fechar seja numa fenomenologia, seja numa analítica da linguagem na linha de Wittgenstein, colocando uma espécie de proibição de abordar as questões que não podem ser ditas (clara e distintamente). Ora, mesmo se um pensamento filosófico desse tipo estima que tais questões sejam inconvenientes ou impertinentes, elas não deixam de se colocar ao comum dos mortais. Onde o homem ordinário vai encontrar, não respostas que dão segurança, mas a certeza de que tais questões não são vãs e ao menos merecem ser consideradas, ou que considerá-las como tais faz toda a dignidade de nossa espécie (logo, sua diferença)? Se Nietzsche – sempre evocado a esse propósito pelos pós-metafísicos – efetivamente recusou uma metafísica dualista de tipo platônico, ele não cessou de colocar em toda sua obra questões essenciais, « nós que conhecemos » (Wir die erkennenden). Como o homem ordinário vai assumir o sentido de sua vida se o filósofo se recusa a abordar esses problemas, ou se desvia formalmente deles, ou se fecha no negativismo desconstrutivo? Ele abandona, então, as interrogações dos homens? Nesse caso, a poesia, que aceita às vezes enfrentar tais problemas, asseguraria uma substituição segura e suficiente?

A fé em luta contra o fundamentalismo

Essa observação leva-me a considerar a aflição do religioso em nossos dias ou a crise da fé. Se a razão e as racionalidades são agitadas por diversas formas de niilismo (de um lado, por racionalidades descontroladas; do outro, pelo pós-metafísico), o mundo da fé ou das religiões não parece estar em sua melhor forma. Nós o sabemos: todas as religiões são, de algum modo, corroídas pelos fundamentalismos; eles tomam formas diversas segundo o horizonte teológico próprio a cada monoteísmo (mas isso também é verdade no hinduísmo); simplificando, por conta das necessidades dessa reflexão, eu diria que eles podem ser caracterizados como fechamentos sobre si, como crispações sobre a certeza, como recuo a identidades que cremos comprometidas, ameaçadas, abaladas. De certo modo, esses fundamentalismos constituem refúgios acolhedores quando a razão é impotente, enlouquece ou se cala sobre o essencial. Eles propõem respostas ilusórias, as quais nós cremos encontrar quando a razão não oferece mais recursos ou ainda quando os sistemas de crença parecem rígidos, dogmáticos, desumanos. Mas eles oferecem refúgios afetivos calorosos quando a religião tornou-se fria e burocrática. Eles alienam a gurus próximos quando o aparelho eclesiástico se afasta ou martela proibições não compreendidas.

A esse propósito, também a Igreja católica sofre uma crise bastante dramática na fé: tanto os fundamentalismos que provocam a deserção de muitos fiéis quanto os integrismos e os conservadorismos que lhe afligem não se devem única e principalmente a causas externas. Eles encontram um alimento sempre novo numa centralização excessiva e burocrática, numa hierarquia afastada do povo ou se substituindo ao povo de Deus, num discurso moral abrupto, impiedoso com os fracos mais que realmente evangélico e, a esse respeito, os mesmos papas que convidam de modo justo ao diálogo entre fé e razão poderiam se interrogar sobre o comportamento de seu magistério, o qual contribui surdamente às aflições do tempo e da Igreja. Nesse caso, a crise da fé não vem de um prometeísmo da razão, mas, ao contrário, de sua fraqueza; fraqueza que faz a vida de fé se agarrar em falsas certezas e que crispa a palavra magisterial num autismo completamente estéril. Pode-se, aliás, se interrogar: qual coerência existe entre os apelos ao diálogo em Fides et Ratio e as firmes certezas formuladas em Veritatis Splendor (1993) ou em Evangelium Vitae (1995), em nome de uma Verdade invocada sem as precauções hermenêuticas indispensáveis a um discurso fundado?

Essa crise não deve ser atribuída aos ataques de uma razão todo-poderosa contra a religião, mas a uma fraqueza interna à própria fé, fraqueza que do lado dos fiéis leva ao conservadorismo, ao integrismo, à contracultura, logo ao recuo ao bastião católico; ou que conduz muitos a abandonar as igrejas. Do lado da hierarquia, essa crise leva a crispações inquietas, a um controle – aliás vão – das práticas (litúrgicas, entre outras, mas também morais) e dos pensamentos, ainda que o mesmo Magistério proclame sua afeição ao diálogo ecumênico ou inter-religioso, proibindo-o ou suspendendo-o, de fato, na Igreja! Essas crispações não podem de modo algum ser consideradas como sinais de vitalidade e de saúde. Declarar que certos assuntos são tabus e inabordáveis significa dizer claramente sua própria impotência e seu medo diante da discussão. Isso não é o testemunho de uma fé feliz e radiante. É manifestar, na verdade, sua impotência e seu medo, fechar-se em falsas certezas, reforçar um bastião efetivamente ameaçado ou mesmo em ruínas!

Eu deixo de lado aqui o Islã, que mereceria, contudo, um estudo preciso: também agitado, sobretudo, pelo fundamentalismo que toma forma nos islamismos, ele constitui um perigo para os próprios muçulmanos, como testemunham as guerras inexpiáveis entre sunitas e xiitas ou no interior dos próprios países muçulmanos (Algéria em 1991-2, Somália, Iêmem, Paquistão, Síria, Mali). Esse perigo diz respeito também ao resto do mundo, pelo fanatismo terrorista entretido por ele e pela fascinação que ele exerce nos espíritos fracos, encontrando ou crendo encontrar nessa religião os recursos de sua vontade de destruir ou de ameaçar as liberdades. Eis ainda uma tetanização da atitude religiosa, que vem de uma relação jamais realmente examinada no interior das tradições islâmicas, no que toca à relação com a razão ou as racionalidades científicas, no que toca, por exemplo, à leitura do Corão.

Possíveis saídas

Nossa análise não deve ela própria, contribuir ao niilismo, isto é, a perder a esperança, finalmente, seja diante da razão, seja diante da fé. Trata-se de ser lúcido sobre as enfermidades de uma e de outra; e, além disso, em seu diálogo com o filósofo Habermas, em Munique, o cardeal Ratzinger não hesitou em falar das enfermidades que podem afetar a religião. Essa lucidez deve abrir-nos a tarefas essenciais, tanto do lado da razão quanto do lado da fé.

Do lado da razão, é importante analisar bem as consequências da aceitação da ideia de uma era pós-metafísica. É necessário não considerar essa « era » como uma realidade de fato, que seja evidente. Uma tarefa se impõe, primeiramente, de ver bem em quê uma metafísica dualista criticável não pode significar que qualquer interrogação metafísica tenha se tornado obsoleta. Eu fiz alusão a isso anteriormente a propósito da interpretação habitualmente dada, seguindo uma leitura tendenciosa de Nietzsche. É necessário insistir também nas consequências ou nas inconsequências de tal postulado (pois isso é um!).

Uma delas conduz a inscrever abertamente o trabalho do pensamento num certo tipo de fideísmo, pois se estima, seguindo um Kant atrofiado, que a questão do sentido último é sem resposta. É o caso do programa anunciado por Jean-Marc Ferry em La religion réflexive (Paris, Cerf, 2010): « de uma maneira geral, não cabe à filosofia de hoje responder ao sentido da existência, mas antes ao sentido da experiência ». A razão dada é a seguinte: « em nossos contextos, a expressão ‘sentido da existência’ remete sempre a esperas soteriológicas, por mais sublimadas que sejam »; a filosofia deve permanecer numa « opção fideísta », reivindicada como tal. Trata-se de entender por « fideísmo, uma posição de fé que não busca absolutamente se sustentar em intelecções teóricas » (p. 17). « Trata-se menos de crença que de resolução », o que define a « religião reflexiva ». « Quem se engaja nela não se orgulha de nenhum acesso privilegiado à verdade. Trata-se de um ato de pura liberdade, privado de fundamento, ato arriscado que faz com que se ofereça ou não sua confiança ao real » (contracapa). Pode-se definir melhor o que a tradição filosófica e teológica denomina fideísmo; nós conhecemos seus perigos, para « hoje » notadamente: o perigo de abandonar as questões do sentido da existência e de deixar seu comércio aos gurus ou aos irracionalistas dos fundamentalismos. Também o perigo de se expor ao irracional no que toca às questões fundamentais, ou de deixar vazio esse espaço imenso. Fazendo isso, o filósofo não estaria abandonando uma tarefa essencial e se limitando, demasiado friamente, a decifrar as experiências comuns? A « confiança ao real » não pode se apoiar em nenhuma razão, ou ela pediria um salto mais ou menos irracional, por uma confiança sem fundamento? Seria interessante continuar a pesquisa: Jean-Marc Ferry não é o único a expor assim sua obediência ao fideísmo. Outros, após a desconstrução segundo Derrida, poderiam ser abundantemente citados, como Jean-Luc Nancy em suas últimas produções. Há aqui todo um canteiro a ser investido, tanto a evidência do « pós-metafísico » parece natural, quando, na verdade, seria conveniente medir as consequências daquilo que, em muitos lugares, tornou-se um slogan não-discutido e indiscutível.

Uma segunda consequência toca às questões éticas e/ou morais, pois a crítica da metafísica provoca, aos olhos de muitos, a recusa em colocar a questão da « vida boa », ou do que eu chamei de sentido da existência. Eu não entro aqui nas justificativas discutíveis que se pode dar para tal recusa. Eu me contento em notar que ela provoca uma negação em relação à referência a um « substancial » em favor de um puro « formal ». Não poderíamos mais falar de valores ou de referências substanciais, demasiado ligadas a uma referência religiosa ou a uma Transcendência, e seria conveniente se entender somente e primordialmente sobre referências formais ou procedimentais. Mas como, portanto, a razão comum poderá analisar e se decidir em relação aos problemas fundamentais que nos dividem e que, no entanto, se nos impõem com urgência? Podemos chegar a uma unanimidade através da discussão procedural, como propôs outrora Habermas, sobre as questões de vida ou de morte, de violência e de não-violência, de relações entre religiões e culturas? Ou não seria necessário identificar o que está existencialmente em jogo nessas questões, sem esperar as conclusões de uma comunicação indefinida, e indefinida por princípio? É isso, aliás, o que fez o próprio Habermas em seu livro O futuro da natureza humana. Rumo a um eugenismo liberal? (2001), obra na qual o filósofo do procedimentalismo toma claramente partido contra certos tipos de manipulações genéticas por parte dos pais, apoiando-se na ideia « substancial » de autonomia e de dignidade da criança. Como kantiano consequente, Habermas estima que o valor da dignidade de todo ser humano proíbe certas práticas eugenistas, e essa referência « substancial » – se existe uma – é invocada sem referência a uma Transcendência, nem fundada numa religião… A preocupação bastante substancial com o « futuro da natureza humana » é, aliás, estranhamente convergente com a preocupação de Bento XVI acima citada, quando ele invocava o « futuro da civilização ». A razão prática não estaria aqui plenamente autorizada a avançar tal proposta e não renunciaria à sua tarefa se recusasse avançar seus argumentos na mesa da discussão comum? Ora, é « hoje », numa sociedade pluralista, que nós precisamos da implementação refletida de tal discussão, em relação à qual a referência ao puramente formal ou ao puramente procedimental permanece demasiado curta.

Ora, outra consequência lógica a ser tirada dessa situação: a referência inevitável ao substancial não pode não colocar o problema metafísico, isto é, o do sentido e do valor da vida, logo do bem. A vida vale ser vivida, sim ou não? O nada e o caos são a última palavra de tudo, sim ou não? O niilismo é nosso destino, sim ou não? Para não responder a essas questões, nós podemos nos fechar na análise dos fenômenos ou da linguagem, mas trata-se, então, de uma fuga num fideísmo que abandona o que a tradição filosófica não cessou de interrogar: o sentido da vida, do Ser, da vida comum. Se ela respondeu a isso sob a forma de um dualismo insustentável, como tal, não é certo que não haja outros recursos abertos a uma razão sensata. Em um pequeno e sugestivo livro, As âncoras no céu. A infraestrutura metafísica (Seuil, 2011), Remi Brague propôs que, se a metafísica tradicional está desacreditada e desertada, nós o devemos a Avicena, que teria separado ser e bem, entregando o ser à pura contingência de um fato sem nenhum alcance. Ora se o Ser não é senão um ser-aí contingente, por que se apegar a ele, fruí-lo, amá-lo, logo desejar viver? Segundo Brague, essa distinção funesta abriria o caminho ao niilismo e ao desespero, o que ilustraria bastante bem a filosofia de Schopenhauer, da qual Nietzsche buscou se afastar durante toda sua vida. Ora, « se o niilismo não mata, ele faz viver? », pergunta Brague (p. 109). Se a vida não tem sentido, por que viver e, sobretudo, por que dar a vida a outros e trabalhar para seu bem-estar? « Para que a humanidade continue a existir, diz ele, é necessário que os homens estejam fundados na ideia, explícita ou implícita, de que a vida é um bem. Ela deve ser um bem não somente para aqueles que a dão, mas também, decididamente, para os que a recebem » (p. 106). Portanto, a reflexão que se avança nos caminhos de um vínculo intrínseco entre ser e bem reencontra sua urgência: trata-se de nada menos que a sobrevivência da humanidade. Isso se aproxima das preocupações convergentes de Bento XVI e de Jürgen Habermas.

A essa tarefa da razão, a fé (cristã, particularmente) pode e deve contribuir muito. Não se substituindo à tarefa própria da razão, fazendo um curto-circuito em seus trabalhos próprios, pisoteando suas racionalidades específicas, mas ajudando-a a querer a si mesma. A propósito do niilismo, Nietzsche diagnosticava : « der Wille fehlt » (falta a vontade). A vontade pós-metafísica é fraca, paralisada, falta-lhe a audácia, ela não ousa mais, à imagem do último homem que procura somente sua pequena satisfação e suas tranquilidades, recusando a mensagem de Zaratustra que o convida, ao contrário, a se « superar », logo a não se satisfazer com o que é superficial e mais fácil. A não jogar, tampouco, um jogo da desconstrução, estéril e, além disso, com um programa vago. Ora, o cristianismo, ao propor que a humanidade entre numa Aliança na qual a Palavra divina suscita e conforta a palavra humana, pode constituir essa referência fundamental que ajude a vontade e a liberdade a querer a si mesmas. Suscitar a liberdade, « criá-la », tal é a Boa Nova de uma mensagem cujo essencial se sustenta neste mandamento: « levanta-te e anda ». Toma tua maca e avança: não num fideísmo medroso, mas numa certeza fundada de que vale mais andar do que ficar deitado, que é melhor avançar nos caminhos da vida do que recuar, que é melhor trabalhar para o bem de todos do que salvar somente seus próprios interesses. A função de uma Palavra de autoridade não é ameaçar ou condenar, mas convidar a se tornar grande, a crescer. É o que diz São Paulo, de modo severo, em relação à comunidade de Corinto: pois se eu falo alto e forte, diz ele substancialmente, é para vos « edificar », construir-vos, fazer-vos ir em frente (Segunda epístola aos Coríntios, 13,10), não para vos destruir ou vos desencorajar. Não é esse o princípio fundamental e a justificação de toda autoridade na sociedade, na família ou na Igreja? Consequentemente, deveria estar claro que a tarefa da comunidade de fé deve ser uma tarefa positiva de encorajamento para que a humanidade se levante e se estimule reciprocamente. Tal comunidade, a Igreja, não possui certamente a Verdade a ser entregue como tal, esmagando ou ameaçando as liberdades. Ela deve se converter a essa Verdade, mas deve ajudar cada um a viver essa mesma conversão.

Tanto a crise das racionalidades quanto a crise da fé são, na realidade, crises de confiança em si mesmo. A razão enlouquece quando se dá ambições ilusórias (prometeísmo ou cientificismo); a fé trai sua mensagem quando esquece que ela é serviço, e não dominação. Ambas se abrem a seus deveres e a suas vocações quando reconhecem seus « limites », para usar uma linguagem kantiana. Não sua impotência, mas sua complementaridade. Sobretudo quando uma e outra confiam n’Aquele que as oferece a si mesmas. Porém, para concluir uma reflexão sobre tais assuntos que nós não podemos, na realidade, concluir, faz-se necessário ainda e finalmente notar que os momentos de crise, por mais perturbadores que sejam, são também momentos de criatividade. Eles obrigam a não adormecer sobre certezas; eles mobilizam a razão e a fé, logo o homem inteiro; certamente, nós sempre podemos nos deixar esmagar por esses tempos de crise, acrescentar ainda mais de modo pessimista, contribuir, assim, com o reino do niilismo. Nós podemos também – e devemos – dar-nos todos os meios de que dispomos para olhar positivamente para o futuro a construir, não nos abandonando a um fideísmo de demissão, não fazendo apelo a uma autoridade doutrinária e condenadora, como é bastante frequentemente a grave tentação na Igreja católica. E, além disso, o estado de crise, isto é, de interrogação de si, não é a situação ordinária da vida humana? Uma humanidade sem crise e sem busca de saber seria ainda uma humanidade vivente? Uma crise só é esmagadora para espíritos abatidos e para vontades enfraquecidas; ela é o terreno natural e normal da criatividade: nós o observamos nas ciências como nas artes. Mas isso também deve ser verdadeiro tanto em filosofia quanto na religião. Não devemos, então, abrir demasiadamente as orelhas às sereias do niilismo, do derrotismo ou do negativismo. Não devemos sustentar, em lugar algum, que o nada ou a morte sejam produtores de vida e do bem-viver.

 (Tradução: Francys Silvestrini Adão sj)