DELGADO, José Luiz. Jacques Maritain: o filósofo. In: Diário de Pernambuco, Recife, 29/04/1993, p. 2.
José Luiz Delgado (jslzdelgado@gmail.com)
Não era assim que S. Tomás chamava a Aristóteles? Aos outros citava pelos próprios nomes, mas o Estagirita ele confundia com a própria filosofia. Assim também nós: se nossa visão fosse menos turvada pela poeira das questiúnculas, das pequenezas, das indisposições, assim também nos referiríamos a ele, como “o filósofo”, ao menos o filósofo deste nosso século XX, privilegiado tempo, privilegiadíssimo, que teve a ventura de contar com sua luz, sua altura, sua clarividência. Falo de Jacques Maritain, morto há 20 anos, em 28 de abril de 1973, e que tanta influência exerceu neste nosso Brasil.
Não há filósofo neste século comparável a ele, não há lucidez como a sua, profundida igual, tanta robustez e densidade de pensamento. É permanente deleite, imensa alegria, lê-lo e relê-lo, para, a cada vez, aprender coisas novas – também admiravelmente bem escritas. Espanta por isso (ou espantaria, se não soubéssemos o que há por trás) o silêncio que certos levantamentos de filosofia do século XX fazem de sua obra e do movimento de que foi ele o principal mentor, o neotomismo, como dizem, ou o simples tomismo, como ele preferia, o tomismo apenas retomado e novamente posto em caminho. Vários desses compêndios liminarmente o ignoram, como se não quisessem dar ao tomismo direitos de existência na cidade dos homens. Dois preconceitos, creio, explicam essa marginalização. Dois mitos contra os quais Maritain ousou investir.
De um lado, ele renunciou (se me entendem) a um pensamento próprio. Na verdade, literalmente, isso é impossível: se alguém pensa, é evidente que esse pensamento é pensamento próprio. O que aconteceu com Maritain foi que sua investigação o levou a convencer-se da verdade de uma doutrina já formulada (incompleta e imperfeita, é claro, como tudo que é humano, mas, como ele dizia, “essencialmente fundada na verdade”). Por que haveria, então, de abandonar essa filosofia, somente porque não fora invenção sua, somente pelo gosto de bancar o original? Os filhos de Descartes não toleram semelhante comportamento. Os modernistas individualistas que aprenderam com Descartes a romper com toda a tradição e recomeçar tudo de si mesmos e, portanto, a criar tantas filosofias quantos sejam os filósofos – rejeitam instintivamente essa outra opção de inserir-se numa corrente e filiar-se a doutrina alheia e já constituída.
Mas esse ainda é um preconceito menor. Pior seria o de pretender-se filósofo e não renegar a fé: filósofo e cristão, filósofo cristão. Mil injúrias, injustíssimas, desonestas, assacam então contra ele, denunciando de suspeita sua meditação, como se se fundasse nos dogmas de fé, como se tivesse as soluções de antemão, previamente fornecidas pela revelação, como se não participasse, também ele, da angústia do filósofo que tudo quer conhecer e que corre todos os riscos, disposto a ir aonde o levarem as inquietações e as perquirições de sua razão exigente e desassossegada. É um escândalo, para esses, uma absoluta impossibilidade, que o contrário aconteça, que alguém chegue à fé precisamente pelo caminho da razão, ou seja, que a fé cristã possa ser também um ponto de chegada – ela que, em tantos, é um ponto de partida.
A essa objeção Maritain dedicou boa parte de suas reflexões, fazendo questão de distinguir o caminho da razão e o caminho da fé, a filosofia e a teologia. Ninguém mais escrupuloso do que ele. Sempre ressaltou a natureza singular do “opus philosophicum”, da “via inventionis”, a via da descoberta, o esforço da razão, apenas da razão, para esquadrinhar as perguntas fundamentais, as perguntas sobre a existência, explicitamente rejeitando todo argumento de autoridade, humana ou divina, de um mestre ou mesmo da Igreja. A doutrina (improvável, mas não impossível, como ele observou, e que de fato aconteceu) essencialmente fundada na verdade, a que ele aderiu, ele a via como “uma doutrina aberta e sem fronteiras, aberta a toda a realidade onde quer que se encontre, e a toda a verdade, donde quer que venha”, “indefinidamente progressiva” e sobretudo “livre de tudo, salvo da verdade, e livre a respeito dela mesma, de suas imperfeições (para corrigir), de seus vazios (para preencher), de seus formuladores e do próprio mestre que a instituiu – livre dele, como ele mesmo era, pronta, como ele, às mudanças e às refundições requeridas por uma melhor vista das coisas”. Nem sempre o tomismo como escola, historicamente considerada, procedeu assim. Maritain, porém, foi assim mesmo que trabalhou, com essa suprema e exclusiva paixão pela verdade, por todas as verdades, com essa independência, essa liberdade, esse rigor. Por isto mesmo, dele se pode dizer que é “o filósofo”, o filósofo por excelência deste nosso século XX abençoado.
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