Que sentido tem, ler Raïssa e Jacques Maritain nos dias de hoje?Não se trata de discutir a atualidade de Maritain, mas antes de situá-lo nopercurso do pensamento filosófico dos autores cristãos das últimas décadas,na maioria teólogos, com o objetivo específico de chamar atenção para a suaidentidade, que é também a razão, nem sempre bem explicitada, dos grupos deestudiosos de seu pensamento.Para entender a importância, num certo sentido, perene da obra de Maritainparece-nos indispensável partir do homem, ou mesmo, do casal cristão,apaixonado pela busca da Verdade, segui-lo na docilidade com que percorreuo itinerário que lhe reservou a Providência, manifestado na harmoniosasequência de suas obras, cuja unidade se revela à luz do Espírito que asanima.
O cristãoComecemos pela dramática proposta que fizeram juntos, os jovensuniversitários Raïssa e Jacques, no Jardin des Plantes – a verdade ou a morte– proposta reveladora do clima cultural de divisão e de confronto da época,proposta radical, quase incompreensível em nossos dias, em que o diálogonão é mais uma opção, mas uma necessidade de convivência com o diferente.Seduzidos pelas preleções de Henri Bergson, foram levados a procurar LéonBlois num caminho de conversão, em contraste com o clima de liberdade eecumenismo que hoje reina nas diversas tradições religiosas e culturaisjudaico-cristãs.Maritain, em busca de uma vida na verdade, segue o caminho ditado pela suasede íntima de absoluto e insatisfação com o relativismo reinante no ambientepositivista, racionalista e diletante que predominava na universidade. Odiscurso de Bergson, por um lado, os desperta para a experiência da realidadeda vida e por outro, o testemunho cristão o faz descobrir o tomismo,ressuscitado pela Igreja de seu tempo. Pede o batismo e suscita seus primeirosensaios, tanto filosóficos 1 como na área da história da cultura 2 .
1 Réflexions sur l’intelligence et sur sa vie propre, Paris, Nouvelle librairie nationale,19242 Trois réformateurs : Luther, Descartes, Rousseau, avec six portraits, Paris: Plon,1925
Pela qualidade de seus trabalhos, Maritain logo se revelou como mestre,embora sua atuação não o qualifique para o quadro institucional, nem público,marcado pela laicidade do Estado, nem eclesiástico, domínio exclusivo dosclérigos.Na verdade, o pensamento de Jacques Maritain o levava a discutir inúmerasquestões centrais da teologia, principalmente na esfera do conhecimento deDeus e da antropologia, as duas primeiras partes da Suma Teológica, emparticular a teologia mística e a ética social.Pode-se dizer que Os degraus do saber 3 e O humanismo integral 4 são as duasobras maiores do filósofo, passeando como cristão, místico e leigo, à luz da fé,nas principais avenidas da problemática teológica dos anos trinta.
Seu pensamentoÉ demasiado simplista dizer que Maritain é um filósofo tomista. Ele mesmo seconsiderava discípulo de Tomás de Aquino, mas o foi à sua maneira, o que orevestia, em muitas questões, com as cores de verdadeiro renovador, sendocriticado, às vezes, fortemente, pelos teólogos, tanto tomistas propriamente ditoque seguiam os comentadores clássicos do início da modernidade – Cajetano,João de Santo Tomás e os Salmanticenses, por exemplo – como osautodenominados tomasianos, que começavam a colocar a obra de Tomás nocontexto histórico medieval, acolhendo o estilo atual de fazer teologia, posiçãoque prevalece hoje, depois do Vaticano II.O tomismo de Maritain, porém, é original. Não que ele tenha buscado aoriginalidade. Considerava-se um tomista clássico 5 , digamos, e formava ao ladodos tomistas mais conservadores, que em geral contam com ele. Esse é,justamente, um dos grandes problemas da herança mariteniana, sua tendênciaa se manter nessa linha conservadora, resistente ao diálogo com opensamento contemporâneo, tanto em filosofia como em teologia.O que caracteriza o pensamento de Maritain se poderia ir buscar na posiçãoque tomou na famosa discussão sobre a natureza da filosofia cristã, no iníciodos anos trinta 6 . Maritain não concorda com a ideia de uma filosofiapropriamente cristã, defendida por Étienne Gilson, mas admite que o cristãotem seu modo de abordar as questões como homem de seu tempo,antecipando assim, de décadas, o que hoje se entende por diálogo intercultural 3 Distinguer pour unir ou Les degrés du savoir, Paris 19324 Humanisme intégral. Problèmes temporels et spirituels d'une nouvelle chrétienté,Paris: Fernand Aubier, 19365 Le docteur angélique, Paris, Paul Hartmann, 19296 De la philosophie chrétienne, Paris, Desclée de Brouwer, 1933 e que, de certo modo, está na raiz do pensamento oficial da Igreja, expresso naprimeira exortação apostólica do papa Francisco, a Evangelii gaudium.Maritain não somente pode, mas deve ser lido como um cristão em diálogocom seu tempo e é isto que faz sua grandeza, tanto no campo da filosofiacomo da ética, em especial na política e na busca da paz, inclusive no campointernacional. A contribuição que deu na célebre reunião da UNESCO, hásetenta anos, na origem à Declaração dos Direitos Universais do Homem, de1948, está esboçada em Primado do Espiritual 7 e tem seu fruto maduro nospropósitos do Camponês do Garone 8 , em que se define em relação aos novos tempos.
O contexto com a morte de Raïssa, Jacques Maritain passou a integrar a Fraternidade dosIrmãozinhos de Foucauld, gesto revelador da dinâmica profunda de sua vida,do Espírito que a animou desde o princípio.Espírito que o levou a se casar com uma mística russa, fecundando oracionalismo francês com o espírito do cristianismo oriental. Espírito que olevou à lucidez com que acolheu na obediência, num momento difícil, aorientação de Pio XI, afastando os católicos da Action Française. Espírito que ochamou para a intimidade de uma fraternidade contemplativa, quando ficousozinho.Ousamos por isso, concluir, lembrando o célebre dito de são João da Cruz, queMaritain gostava de citar: “ao entardecer dessa vida seremos julgados peloamor”. Animada pelo Espírito, chega-se à conclusão de que sua vida e suaobra não podem ser definitivamente entendidas senão à essa luz.
São Paulo, 25 de Agosto de 2017
Francisco Catão
7 Primauté du spirituel, 19278 Le paysan de la Garonne. Un vieux laïc s’interroge à propos du temps présent, Paris, DDB, 1966
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