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RAZÃO E FÉ: DIFICULDADES DO SALTO DE FÉ

Atualizado: 5 de ago.

Palestra apresentada na reunião do IJMB em 26/06/2000


Com licença para não repetir meu comentário à encíclica Fides et Ratio (acessível na Revista Eclesiástica Brasileira de março de 1999), pretendo apresentar uma reflexão sobre o mesmo tema, invertendo apenas os fatores, de modo a tentar acender alguma luz sobre quatro itens fundamentais no mundo atual da religião e não abordados na problemática própria da encíclica citada. Com isso queríamos apontar as dificuldades do imprescindível salto da fé religiosa efetuado no terreno do transcendente simbólico, a fim de decidir se o Absoluto que encarregamos de dar sentido à nossa vida é um simples jogo de palavras, como pensa o filósofo Richard Rorty, uma assembléia olímpica de 33.000 divindades oferecidas a nossa escolha e devoção, como no hinduísmo, ou uma divindade pessoal, criadora, como entendem as três religiões monoteístas, chamadas do Livro. As quatro secções desta exposição são as seguintes :

 

I. DA ENCÍCLICA “FÉ E RAZÃO” À PROBLEMÁTICA ATUAL “RAZÃO E FÉ”

O ponto de vista do papa é da autoridade institucional que fala como vigário do Verbo encarnado: à luz de seu ensino discerne-se o bem e o mal, a verdade e o erro, o admissível e o inadmissível. Uma operação similar é concebível a partir de qualquer conjunto dogmático ou ideológico, em dependência formal do ideal de coerência e congruência mais do que da verdade objetiva, ainda que a pretensão de seus autores seja sempre de coincidir com a própria verdade. No catolicismo esta operação, efetivada em Fides et Ratio, apresenta um conteúdo que não pode ser diverso, no fundo do conteúdo do Catecismo da Igreja Católica promulgado pelo mesmo papa. É outra apresentação do dogma e ensinos católicos, sob aspecto de seu enfrentamento com os acertos do mundo pensante e os seus erros mentais.

O mesmo tópico Fé e Razão admite outro enfoque, não menos a serviço da instituição eclesial e da humanidade, a abordagem quase missionária (mas hoje esta palavra não desfruta um sentido positivo em todos os meios). Consiste em partir da razão (incluindo ciências, filosofias, sabedoria e experiência humana em geral, na imanência do mundo) para chegar à fé cristã. Este enfoque, que será o nosso, está enraizado no presente e voltado para o futuro, ao passo que a encíclica Fides et Ratio é uma retrospectiva do caminhar da verdade cristã, no dédalo das idéias de muitos séculos da cultura do Ocidente.

Passar da razão secular à fé religiosa envolve uma opção antropológica de considerável relevância, mal enxergada na perspectiva do dualismo corpo-alma atribuído a Descartes. A antropologia utilizável em filosofia da religião e no cristianismo tem fundamento tríplice: corpo-alma (psuké, nous) -espírito (pneuma). Esta trilogia permite aderir à revelação bíblica do ser humano feito “à imagem e semelhança de Deus”. Na patrística, achamos em Orígenes um grande teórico deste fundamento tríplice. Mesmo se a alma (nous) já representa, segundo Orígenes, uma dialética da imagem divina no ser humano ( cf. Crouzel e Dupuis), é o componente espírito (pneuma) aquele que permite o salto da fé teologal que plenifica a presença do Espírito Santo no justo.

A segurança dogmática do Papa João Paulo 2o o leva a contestar o equilíbrio humano, tanto individual quanto social, na ausência desta atualização cristã da mente. Sem a explicitação do divino, vacilaria todo equilíbrio natural do homem. João Paulo 2o parece próximo de aderir a este pensamento do bispo anglicano de Durham, D. David Jenkins: “a redução da teologia à antropologia (alusão a Feuerbach) não passa de prelúdio para a redução da antropologia ao absurdo. Se tivermos razões para reinterpretar a antropologia em termos de teologia, podemos esperar nos salvar do absurdo”. Sem cairmos no secularismo, a perspectiva “Razão e Fé”, significando o processo da razão ou da mente em busca de um sentido para a vida, percebe a insuficiência da Ciência para rechaçar totalmente o absurdo ou, pelo menos, a pobreza das suas razões de viver e dos fins do agir. Aí vem o conjunto de uma experiência humana que ultrapassa a racionalidade, sem excluir perguntas e dúvidas. Como dizia alguém: As verdadeiras e mais profundas perguntas não têm resposta ou, se uma resposta existir, não temos acesso a ela, salvaguardando a opção para uma opção voluntarista de fé, admitida pela razão sem ser apodicticamente sustentada. Aí vem o papel da fé, insubstituível para evitar o desespero dos desnorteados mais exigentes ou, pelo menos, para evitar que o pragmatismo pouco exigente transforme a vacuidade em agnosticismo.

 

II. O “INSTINTO RELIGIOSO” NATURAL, NA RAIZ DO “SALTO DA FÉ”

O salto do saber humano para a fé religiosa é permitido e favorecido pelo reconhecido instinto religioso do homem que convoca sua mente a uma transcendência solicitada pelo simbolismo a fim de conceber, não sem riscos, algo do mundo invisível onde mora a essência do sagrado. Tal salto está também favorecido pelo relativo desprestígio atual da razão que pressente as fronteiras das ciências. Além disso, a razão está sendo castigada pelas fortes ondas da emotividade que alimenta mídia, marketing, desfrute imediato dos sentidos, glamour de todo tipo; por puro pragmatismo são poupadas as tecnociências que alimentam, mediante cálculos, experimentos e tecnologia, a elevação do padrão de vida dos criadores de moda. Tudo isso foi explicado por vários autores, como Bertrand Saint-Sernin.

Nesta seção adotamos a problemática do neuropsiquiatra católico de Viena, Viktor Frankl, professor em várias universidades norte-americanas (Harvard, Stanford, San Diego, Pisttsburg e Dallas). Lançando mão da interpretação psicanalítica dos sonhos, Frankl acredita descobrir no Id (das Es, ça) uma religiosidade latente, inconsciente ou rechaçada. Na faixa da consciência, Frankl parte da consciência do dever, que é consciência de auto-responsabilidade; para ele, como para nós, esta percepção ética não vem unicamente do Id ou do meio (pela educação e cultura ambiente). Será que a força da responsabilidade moral é apenas reflexo biológico-cultural? Responder pela negativa com Frankl já é um salto que dificilmente seria provado cientificamente, salto interpretativo que constitui o primeiro passo de uma fé que brota da condição (ou do condicionamento) religiosa de nossa mente, especialmente em sua infra-estrutura inconsciente e hereditária. Frankl passa da análise fenomenológica para a transcendência de uma realidade religiosa extra-humana e do próprio Deus (usamos sobretudo o escrito Der Unbewusste Gott, O deus inconsciente, de V.F), sem demorar criticamente sobre a hipótese da introjeção social, que teve a preferência de outros pensadores como Durkheim e Feuerbach. “Esta instância extra-humana deve necessariamente ser de natureza pessoal… A consciência moral torna-se compreensível apenas se lhe reconhecemos uma origem extra-humana, isto é, se reconhecermos o caráter criado do ser humano.” A corrente Nova Era negaria peremptoriamente tais afirmações de V.F. V. Frankl parece ter ignorado ou negligenciado que a identificação desta voz “do além”, que não reconhecemos como puro produto da liberdade de nosso eu, não se efetua sem um salto que já é salto de fé. Isso vale para qualquer religião, ou para a redução desta consciência ética na imanência cultural da educação, como opta o materialismo ateu.

Guando frankl fala em “inconsciente espiritual”, entendemos que ele se refere à abertura religiosa de nossa mente, isto é, à nossa disposição mental para o simbolismo como aptidão a se referir a um além de nosso mundo diretamente perceptível. É a esta capacidade que São Tomás se referia ao caracterizar o ser humano como capax Dei: capacidade natural para receber a graça pela qual a fé religiosa acerta com seu objeto próprio, conveniente. A consciência moral é o lado imanente de uma transcendência que cabe a nossa liberdade esclarecida caracterizar como intramundana ou divina. O salto da fé é sempre livre, condicionado mas não biológica ou cientificamente necessitado. A psicanálise freudiana chama a consciência moral super-ego, derivado da introjeção da imago paterna. De modo mais amplo Durkheim vê nesta consciência moral o reflexo da introjeção da pressão cultural da sociedade (que se autocultua na religião). O eu da psicanálise emerge o Id graças à polarização do super-ego (V.K. acusa a psicanálise de despojar o inconsciente do eu, ao reduzir este inconsciente ao Id).

Jung transferiu a religiosidade inconsciente do lado do Id, irresponsabilizando o eu pessoal. Para V.F. este inconsciente religioso (nem divino nem onisciente) não é realidade do Id; mas relacionamento com Deus, tributário do eu, da pessoa. O maior erro de Jung, para V.F. (que admite o mérito de Jung de ter inserido a religiosidade no inconsciente) foi o de inserir esta religiosidade inconsciente no Id exclusivo, desprezando aqui o eu da liberdade.

Refletindo a partir da problemática de V.F., concordamos com ele, com a precisão de que esta própria descrição antropológica não é totalmente ou propriamente científica: ela implica o salto da vontade numa fé religiosa (caracterizada pela transcendência de sua origem e de seu alcance). Esta fé religiosa pode, ou não, assumir um conteúdo cristão (não cabe aqui investigar as implicações teológicas). O sentido da vida, e, portanto sua finalidade, depende evidentemente desta opção que a teologia católica analisa como sendo na dependência da graça, afirmando (contra Sartre) que o sentido da vida não é uma criação do eu, mas o reconhecimento por ele de uma realidade objetiva (numa certeza que temos de reconhecer subjetiva). V.F. critica Jung por ter situado a origem da pulsão religiosa no inconsciente coletivo, que comunica com Id. A pulsão religiosa falaria em nós com restrito poder da pessoa livre.

V.F. chegou a escrever: “A religião autêntica não tem o caráter de uma pulsão, mas de uma decisão.” Seja-nos permitido matizar. Com Jung, situamos a pulsão religiosa no inconsciente do Id, em misteriosa comunhão com eventual “arquétipo coletivo”, hereditário em nossa espécie, mas submetida à decisão do eu e de sua liberdade. Com efeito, a pessoa pode rechaçar e recalcar este instinto natural, ou lhe abrir as portas da consciência ao lhe atribuir um conteúdo, normalmente pela escolha ou adesão a uma religião já definida. Em nossa opinião, Jung tem razão no enraizamento do instinto religioso em nossa natureza (nas suas profundezas inconscientes) e Viktor Frankl tem razão ao defender o poder da liberdade do eu para discernir seu conteúdo, numa opção entre muitas alternativas, como agora vamos ver.

 

III. ESCOLHAS ABERTAS NA MENTE PERANTE A EVENTUALIDADE DA FÉ

1) PRIMEIRA POSSIBILIDADE: RECUSAR O SALTO, SUA NECESSIDADE E RELEVÂNCIA, porque a religiosidade apontaria para uma divindade de papel ou, melhor dito de palavras consoladoras. “Hoje, 40% dos holandeses declaram-se sem religião” (H. Gauthier, Nouvel Observateur, 02/02/00): isto significa sua não adesão a uma instituição religiosa determinada, investindo de outra maneira (quiçá no esporte, na arte ou no dinheiro) sua religiosidade natural.

A autolimitação do alcance da razão é particularmente explícita em Richard Rorty que, ao negar toda validade a qualquer metafísica, adverte contra a ilusão de crer que a experiência humana remete a um além dela mesma. É um convite para abandonar o preconceito de que “o mundo ou o si mesmo teriam alguma natureza intrínseca”, independente do exercício de nossa linguagem; tais idéias relativas a uma mundo independente de nós não passa de “vestígio da idéia de que o mundo é uma criação divina” (1989, p. 21). Rorty não está isolado: D. Cupitt ensina que “a linguagem cria a realidade” de modo que “como nós, Deus é feito apenas de palavras” (1990, p. X). Percebemos a influência de Nietzsche e de Wittgenstein, como de Heidegger, para abrigar o ser humano e toda sua produção na morada da linguagem; este conceito toma facilmente lugar na corrente do pragmatismo norte-americano. Rorty, nos Estados Unidos, como Gauchet na França, aderem ao processo da “de-divinização do mundo”. O amor pela verdade deve substituir o amor a Deus: “vamos para o ponto em que nenhum culto será relevante, nada será tratado como divindade: tudo – nossa linguagem, nossa consciência, nossa comunidade – será reconhecido como produto do tempo e do acaso” (Rorty, 1989, p.22). A identificação da subjetividade e do objetivo não deixa lugar algum para uma metafísica: tudo não passa de diversos jogos de linguagem.

Outro famoso filósofo contemporâneo, Hilary Putnam, acredita também na inutilidade de Deus, como vã tentativa de conferir objetividade a determinado jogo de linguagem. O realismo cairia com o teísmo que o sustenta, desde que vença a visão de que tudo não passa de linguagens, diversificadas pelos tempos, pelas culturas e pelos contextos. Esta apresentação, sendo descritiva e não apologética, dispensa a refutação da ousada posição de Rorty que “relaciona explicitamente a razão, a verdade e a realidade com a idéia de Deus” (Trigg, 38). Estamos longe de Malebranche como do Bispo Berkeley que acreditavam num Deus avalista da verdade de nossa razão e da realidade do mundo.

O próprio conceito de verdade sofre significativas transformações. Deixando a sintonia da idéia com a coisa do tomismo (adaequatio rei et intellectus), a verdade perdeu seu prestígio intocável quando Kant arruinou o conceito de coisa em si, símbolo do mundo da metafísica. Segundo Spinoza e Hegel, os filósofos aderiram geralmente ao conceito de verdade como não-contradição, consistência e compatibilidade em determinado sistema.

2) NUMA OUTRA OPÇÃO, O SALTO PODE SER RECUSADO EM NOME DE CERTA RACIONALIDADE decorrente de certo humanismo secular. A dignidade humana consistiria em reconhecer nossa incapacidade de afirmar mais do que podemos provar. A estrela cantora-pop irlandesa Sinéad O’Connor (30 anos e dois filhos em 1997) teve uma fase de revolta contra o catolicismo em que declarou (em entrevista ao Time de 23/06/1997): “Eu estou interessada em todas as religiões e não projeto aderir a uma religião particular para manter-me aberta a todas. Minha simpatia vai para Igreja de Rasta (Rastafarianism), porque, em vez de declarar Deus morto, prefere declarar que Deus está vivo em cada um de nós”. Isto evoca tanto Spinoza quanto a Nova Era. Quanto a Sinéad O’Connor, ela se tornou sacerdotisa num ramo cismático do cristianismo.

No mundo intelectual a atitude agnóstica de recusar uma afiliação religiosa institucional por falta de certeza e consciência das limitações do saber humano é muito mais freqüente que o ateísmo propriamente dito. Alguns aqui podem invocar o teorema de incompletude de Gödel, segundo o qual qualquer que seja o número de axiomas admitidos num sistema de pensamento, sobrará sempre questões não respondidas, porque não provadas e “indecidíveis”, em linguagem matemática. Assumir mais dados em nome da experiência empírica, interpretar os sinais, na linguagem bíblica (interpretação sustentácula da fé) é um risco que mentes racionais não acham conveniente assumir. Se a questão não é racionalmente decidível (como a identificação do Ser Supremo), pode-se edificar todo um sistema a partir de uma adjunção-salto, fornecendo conteúdo a tal decisão da fé. No caso do cristianismo, esta adjunção opera-se fundamentalmente através da crença na Ressurreição de Jesus de Nazaré, ocorrência que deixou profundas marcas na história, mas que, em si não é da história.

 

3) UMA TERCEIRA OPÇÃO DECLARA QUE A “FÉ” CARECE DE CONTEÚDO NOÉTICO. Raimon Panikkar parece, por vezes, advogar uma fé sem objeto, assim como Roger Trigg que tem a impressão de que “precisamos de fé, não de fé em algo ou em alguém, mas apenas de fé” (Trigg, 1992, p.33). O budismo, que não acredita em revelação por falta de deuses para revelar, insiste numa meditação que procura excluir todo conteúdo mental. Suspeitamos que uma fé que não serve de embasamento para uma esperança com conteúdo relativamente definível não passa de emoção inconsciente; podemos também nos equivocar nisso. Desta incômoda posição, aproximamos a figura perene de Spinoza que acredita num Deus que não existe em nenhuma religião histórica. Ao sair do judaísmo, Spinoza “conserva, entretanto, da angústia marrana pela salvação, uma concepção quase redentora da razão. Seu ateísmo não é simples negação da existência de Deus. É uma elevação do mundo terrestre no plano divino. A razão está devolvida ao mundo natural, no momento em que a idéia de um Deus transcendente está excluída. A única salvação do homem é o conhecimento verdadeiro” segundo Spinoza (François Furet). Ainda é a verdade que salva, mas uma verdade diversamente definida em relação a João Paulo 2o.

Na postura de Trigg e de Spinoza, aproximamos a posição de um católico, famoso historiador britânico: Paul Johnson, autor de The quest for God. A personal pilgrimage (A procura de Deus. Uma peregrinação pessoal), é melhor historiador do que filósofo, teólogo ou guia para descrente à procura de Deus. No último capítulo (que o autor acha “o mais importante do livro”), após admitir que o ser humano pode não entender Deus, nem sequer ser capaz de crer nele e tampouco ser esclarecido pelas emaranhadas proposições da fé cristã, declara abruptamente que este descrente não deixa de poder rezar. Sem negar que isso ocorre, perguntamos o que é rezar, senão dirigir-se a uma divindade pessoal, eventualmente criadora do universo, cheia de bondade para nos ouvir e repleta de poder para nos atender? Pascal era mais sutil quando aconselhava ajoelhar-se na esperança de crer em Deus. A abertura e até a decisão da vontade importam para ter fé, sem que a fé se definisse por ato de vontade.

Muitos contemporâneos parecem desenganados no tocante ao progresso, à ciência, à bondade do ser humano, sem investir sua perplexidade numa fé religiosa donde brotaria uma firme convicção, uma certeza diz a teologia. Assim a cientista social, escritora Elisabeth Badinter, mulher de um famoso ministro da justiça, que declarou a Atualité des religions (jan. de 2000): “Honestamente, não sei se creio em Deus, mas o judaísmo é minha família… Isto dito, sou muito hostil ao dogmatismo; o crescimento do religioso dogmático que observamos em todas as religiões é abominável”. A repulsa ao dogmatismo (dogmatismo que chega por vezes a alimentar a violência do terrorismo) paralisa de fato eminentes contemporâneos que se defrontam com o eventual investimento de sua religiosidade em determinada religião, a ser escolhida entre muitas propostas (impossíveis de serem todas aprofundadas).

Em vários livros Vamberto Morais defende a idéia – que não é falsa – de que a adesão a Deus é experiência viva, intuitiva, indizível no limite, ainda antes ou mais do que adesão a um credo intelectual, argumentado em provas formais. Qual é o conteúdo noético de nosso conceito de Deus? Santo Agostinho está seguido por muitos místicos quando desconfia da autenticidade de conceito muito claro sobre Deus. Haveria um conceito muito abrangente de Deus? Sem ser hinduísta, Ninian Smark acredita – entre outros – que o hinduísmo é mais apto a catalizar uma união das religiões porque não impõe nenhum conceito unificado de divindade, aceitando conceituações contraditórias entre seus fiéis. Precária parece uma união efetuada sobre base tão instável. Isto faz pensar no “teísmo dialético” proposto pelo teólogo John MacQuaude: ele intui na divindade uma série de “contrastes dialéticos” que desafiam toda definição da essência divina (o uno e o múltiplo, o ser e o nada, o cognoscível e o incognoscível, o todopoderoso e o impotente, o imanente e o transcendente, o passível e o impassível, o eterno e o temporal). A teologia cristã está tematizando algumas destas tensões ao tecer novas páginas de cristologia, em conexão com um repensar da Trindade. Toda cautela é pouca diante destes novos pensares. O filósofo agnóstico Joseph Ohana pensa que a personalidade ganharia ao desenvolver criticamente a própria fé para ver o que sobra: “A passagem da fé ingênua à fé esclarecida é um procedimento da razão. Este processo formal prepara a conversão sem a completar. Para quem tem a fé, a razão diz apenas que esta fé não pode ficar dobrada em si-mesma sem contradição. O problema essencial é precisamente o de saber se a fé que temos é desde já legítima” (Op. cit; 145).

 

4) FÉ ESTÉTICA É PURO IMANENTISMO.Parodiando uma fé religiosa e, por vezes, substituindo a fé religiosa, encontramos o salto além da racionalidade operado no espaço estético. Tal espaço é notoriamente poderoso concorrente atual do espaço bíblico; comove algo profundo nas entralhas humanas, sem impor exigências éticas, nem sociais. Nas principais áreas em que tal conversão ao mítico se apresenta, reparamos a literatura (autores vivem apenas para escrever, com chances – ou não – de publicar, especialmente em poesia, que abre espaço infinito ao imaginário simbólico que nos evade da mediocridade ambiente); reparamos também a arte: pintura, escultura, arquitetura e cinematografia. Encarnar seu sonho na matéria exalta qualquer ego, esta matéria seja o próprio corpo na dança, a palavra na extremidade da pena ou o som acerca da tecla. O ambiente paradisíaco enriquece-se se o louvor do público, os aplausos dos espectadores ou a fama da celebridade aliciam coortes de anjos ao redor da grande alma. Em cada uma das especialidades mencionadas temos conhecimento de artistas que não aspiravam à outra religião se não à religião de sua arte: literatos como André Malraux não escondiam que tal era o sentido de suas vidas, adornado com o gesto de oferecer aos contemporâneos (à eternidade, para os mais pretenciosos) as sublimes páginas de seus escritos, arquiteturas que brotam da terra para o céu ou coleções de moda que desfilam em carne e ossos nos salões da alta costura.

Esta opção não é a menos nobre das substituições ao comprometimento religioso, os deuses da operação tendo sido chamados musas pelos anciãos. A mais nobre, porque a mais etérea, sendo provavelmente a música, perfeita aliada à fé cristã num Bach, num Fauré, nos hinos que tanto contribuíram ao sucesso do luteranismo, música sacra perfeitamente à vontade também no catolicismo com Arthur Honegger e tantos outros, para não falar no ofício cantado dos beneditinos e outros monges. Isto não afasta o risco de um estetismo pseudo-religioso quando o louvor divino desliza em apenas a satisfação dos ouvintes, magnetizados pelo concerto espiritual.

 

5) A OPÇÃO RELIGIOSA ENFRENTA UMA AMPLA PROPOSTA DE CONTEÚDOS apresentados e sustentados por uma infinidade de instituições dispondo de meios modernizados. Mesmo evitando os atalhos anteriores, o pensador candidato a crente enfrenta a “indecidibilidade” de que falamos em referência a certos conjuntos lógicos ou equações matemáticas e que ilustra a famosa sentença: “Todos os cretenses são mentirosos, disse Epimênidas, pensador cretense”. Uma opção deve ser feita fora do campo estritamente científico, mas esta categoria de opção abre o imenso leque do pluralismo das instituições religiosas, Igrejas e seitas, ou para-seitas pseudo-religiosas como da Nova Era, movimento fluido não estruturado, a maçonaria do Grande Oriente ou aGnose de Princeton, título que Raymond Ruyer escolheu para descrever as crenças transcendentais de um amplo grupo, não organizado, de cientistas norte-americanos. É patente que não podemos equacionar um panorama das religiões prontas a escolher o salto da fé religiosa de crentes bem intencionados. Bastará uma menção especial para o budismo, bimilenário, tolerante e pluralista, brilhantemente representado hoje pelo décimo-quarto dalai-lama Tenzin Gyatro, seguramente não laxista.

A. Einstein disse um dia : “Se ciência e fé podem reconciliar-se será no budismo”. A simpatia, para não dizer mais, que cientista tais como Fritjof Capra, Trinh Xuan Thuan e Matthieu Ricard (filho do filósofo e brilhante ensaísta francês Jean François Revel, agnóstico autor de “Nem Marx nem Jesus”) hoje monge na Índia, têm para o budismo só encontra equivalência na vontade do Dalai-Lama Gyatro de se manter informado em física fundamental e ciências cognitivas nos temas que tocam pontos sensíveis do saber budista. O Deus de Thuan é parente da divindade de Spinoza, princípio de organização cósmica, que toma consciência em nós. O diálogo travado por Fr. Capra com os beneditinos norte-americanos David Stendl-Rast e Thomas Matus é de alto nível científico e religioso. Mas entendemos concluir pela evocação da tensão, muito sensível em nossos dias, entre uma ação missionária católica, inevitavelmente dogmática e provavelmente apologética, ainda que sinceramente preocupada com a chamada inculturação, e uma ação mais dialogante visando certo consenso secular sobre princípios éticos de respeito pela pessoa humana e normas empíricas de harmonização das condutas, de maneira a fomentar uma paz de que a humanidade está carente e necessitada.

 

IV. MISSÃO CATOLICIZADORA UNIVERSAL E/OU ECUMENISMO ÉTICO-SECULAR?

Evocamos este desafio porque no relacionamento atual entre fé religiosa e disciplinas seculares, esta questão importa mais do que a especulação sobre deslizes que cercaram a pessoa de Galileu, de Giordano Bruno ou de João Huss. O energético impulso conferido às missões por João Paulo 2o decorre de sua convicção de que, sem opção explícita por Jesus Cristo no seio da Igreja autêntica, o mundo não pode alcançar a paz, a sociedade estabelecer a justiça e o cidadão ter certeza de sua salvação eterna. A pressão do ethos moderno, entretanto, favorece uma tolerância democrática, ainda que traída por enormes pulsões de violências; este espírito democrático acabou por influenciar a Igreja e não parece ter carecido de influência sobre um papa que inovou em gestos ecumênicos tais como a reunião em Assis, de representantes de várias religiões para cultuar quem cada um acha ser o verdadeiro Deus, e tais como o pedido de perdão pelos pecados dos cristãos contra não-cristãos de outros séculos. Isto não chega a ocultar a profunda reprovação deste papa à sociedade secularizada que entende manter no setor privado a opção religiosa de cada um, como o culto que decorre de tal opção.

Católicos não vão contestar a legitimidade e coerência desta opção papal, mas não lhes está proibida a opção para um horizonte mais condizente com a situação concreta da humanidade. Ao abençoar os esforços missionários tradicionais (ainda que seus contextos sejam profundamente diversos dos antigos), é-nos permitido perceber focos de extrema resistência, ontem com a expansão do marxismo, hoje com o dinamismo do islamismo, nem sempre pacífico e atento aos direitos naturais do ser humano (ainda que alguns observadores qualificados nos falem em enfraquecimento da conquista islâmica do mundo). Outras religiões como os budismos não perderam fôlego e as novas seitas captadoras, do chamado revival (despertar da religiosidade), são propriamente incontáveis, ao se multiplicarem a cada ano.

A conquista da humanidade inteira ao catolicismo presidido pelo papa não parece despontar no horizonte de uma previsão histórica. Simultaneamente, a globalização reforça a necessidade de uma ética mínima comum, como terreno indispensável à paz, que todos dizem desejar, mas para a qual poucos aceitam ceder de suas convicções e hábitos. Se formos coerentes com nossas eloqüentes apologias pela vida, os esforços não devem ser poupados, mas priorizados a fim de providenciar o pão quotidiano a todos os seres humanos, desde que Deus conta conosco para atender a este pedido do “Pai Nosso”. Esta necessidade, que achamos óbvia, de um consenso pragmático mínimo, embasado nas mais nobres fundações da natureza humana, exige que admitamos nos outros uma capacidade de altruísmo não nutrido pelas virtudes cardeais de fé, esperança e caridade que estruturam nossa vivência cristã.

No livro Altruismo y Caridad (Roma, Antonianum, 1998), Oviedo Torro evidência, não apenas pelo exame que ele efetuou entre alguns filósofos e teólogos clássicos, mas também pelas suas próprias conclusões, o quanto é difícil para um pensador católico conceber um verdadeiro altruísmo, que não esteja na dependência da caridade explicitamente cristã (cf. resenha em Perspectiva teológica, nº86, 2000, p.88). O troco é rapidamente devolvido. Em Um monde sans dieux (Paris, Plon, 1998), André Grjebine revela a dificuldade de conceber uma sociedade explicitamente religiosa (mulçumana ou cristã, notadamente) que não seja fechada, praticamente antagônica ao processo tecno-científico (Idem, 90): processo humano, para este autor e outros cientistas sociais, exige liberdade social, antagônica de um dogmatismo religioso quase constitucional. No debate que confronta a sociedade vinculada a determinada opção religiosa (deixando os cristão livres de sua opção individual e privada) com a sociedade resolutamente secularizada, a maioria dos cientistas, sociais ou não, até prova do contrário, opta decididamente pela sociedade secularizada, ao passo que João Paulo 2ª opta, não menos resolutamente, pela sociedade católica (com todo respeito, evidentemente, pela liberdade das consciências individuais).

“Se a verdade transcendente não for reconhecida, a força triunfa…” disse o papa em Centesimus annus (nº44). “A raiz do totalitarismo moderno deve ser situada na negação da transcendente dignidade da pessoa humana, imagem visível de Deus invisível…” (Id.). “Se não existe nenhuma verdade última que guie e oriente a ação política, então as idéias e as convicções podem ser facilmente instrumentadas para fins de poder” (Cent. annus, nº46). João Paulo 2o defende o conceito de uma liberdade atrelada á verdade, que para ele, é a verdade do cristianismo (C.A., 46). Refletindo sobre estes textos, o Pe. J. Y. Calvez reage como nós a respeito do consenso sobre o que é liberdade humana ou verdade fundamental…: “Se inexiste tal consenso, então é preciso, mediante um acordo sobre o mínimo, achar um modus vivendi permitindo não violar a consciência de ninguém, respeitar a consciência do outro” (Op. cit; p. 101), sem abandonar um pragmatismo na discussão que se quer eficaz sem jamais contradizer a verdade. Em resumo, por abençoados que sejam os esforços para travar um sincero diálogo ecumênico, se possível universal, na faixa da explicitação religiosa da fé e da oração, não menos relevante e pragmaticamente urgente apresenta-se o ecumenismo ético que almejasse um consenso, teórico e prático, sobre princípios e práticas que possibilitem e favoreçam a paz entre os homens. O setor bioético, entre outros, é capaz de liderar tais esforços (sem excluir a luta contra a corrupção, o narcotráfico, o crime organizado, o branqueamento do dinheiro, espaços que exigem certa coordenação mundial para vencer o mal). Eis a situação em que situamos, para hoje e amanhã, o relacionamento entre “Saber humano” (sob a palavra Razão, entendemos o conjunto das ciências, filosofias e experiências humanas que tecem o positivo das culturas modernas ou pós-modernas) e “Fé religiosa”, ela mesma entendida, com o papa, como fé católica explítica.

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