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Direitos humanos em tempos de pandemia

Direitos humanos em tempos de pandemia

04 dez 2020

Renato Rua de Almeida, presidente do IJMB

Entre os trinta direitos humanos catalogados pela Declaração dos Direitos do Homem da ONU, encontra-se no artigo 23 o direito ao trabalho e à proteção contra o desemprego como um dos mais afetados em tempos de pandemia do novo corona vírus (Covid 19).
Por essa razão, sem desconsiderar o conjunto dos direitos humanos, será feito, na presente apresentação, um corte epistemológico com a análise específica das consequências nefastas da pandemia do novo corona vírus no direito ao trabalho e à proteção contra o desemprego, bem como sobretudo das possíveis saídas para superá-las.
Com efeito, na América Latina, somente o Brasil, com uma população de 212 milhões de habitantes, chegou a 14 milhões de desempregados, quatro vezes a população do Uruguai, grande parte em virtude da pandemia do novo corona vírus, que afetou profundamente a atividade econômica das empresas privadas gerando desemprego em massa.
É importante ressaltar o efeito devastador do desemprego na vida familiar dos trabalhadores e dos mais pobres, considerada a média de cinco pessoas por família, que têm despesas recorrentes com alimentação, aluguel, água e luz, além de – o que é pior – uma sensação de perda ou diminuição da autoestima, e, como diz o Papa Francisco nas Encíclicas Laudato Si´ e Fratelli Tutti, uma sensação de ser descartável na sociedade.
Assim, impõe-se identificar o valor dos direitos humanos, e, em particular o direito ao trabalho e à proteção contra o desemprego, para melhor compreensão da necessidade da superação das mazelas do desemprego provocadas pela pandemia do novo corona vírus.
A propósito, assim se expressa o Compêndio da Doutrina Social da Igreja no Capítulo III, item IV:
“O movimento rumo à identificação e à proclamação dos direitos humanos do homem é um dos mais relevantes esforços para responder de modo eficaz às exigências imprescindíveis da dignidade humana”.
E, especialmente, no que concerne ao valor do direito ao trabalho, assim se expressa o Compêndio da Doutrina Social da Igreja, em seu Capítulo VI, item IV:
“O trabalho é um direito fundamental e é um bem para o homem: um bem útil, digno dele porque apto a exprimir e a acrescer a dignidade humana. A Igreja ensina o valor do trabalho não só porque este é sempre pessoal, mas também pelo caráter de necessidade”.
Portanto, em primeiro lugar, para a promoção do direito ao trabalho e à proteção contra o desemprego em tempos de pandemia, como direito humano, o Compêndio da Doutrina Social da Igreja, no Capítulo IV, apresenta os seguintes princípios a serem seguidos, a saber: princípio da dignidade da pessoa humana, princípio do bem comum, e, especialmente, os princípios da solidariedade e da subsidiariedade.
A propósito, o papa Francisco, na recente Encíclica Fratelli Tutti, capítulo V, item 187, ressalta que “o princípio subsidiariedade é inseparável do princípio da solidariedade”.
Faz-se necessário, desta forma, examinar a promoção do direito ao emprego e do combate ao desemprego à luz especialmente dos princípios da solidariedade e da subsidiariedade.
Em segundo lugar, com o corte epistemológico ora feito, é mister examinar o conceito dos princípios da solidariedade e da subsidiariedade e sua efetiva contribuição para a superação das mazelas do desemprego em tempo de corona vírus.
O fundamento do princípio da solidariedade é apresentado pelo Compêndio da Doutrina Social da Igreja, em seu Capítulo VI, item VI, da seguinte forma:
“A solidariedade confere particular relevo à intrínseca sociabilidade da pessoa humana, à igualdade de todos em dignidade e direitos, ao caminho comum dos homens e dos povos para uma unidade cada vez mais convicta”.
Portanto, é a força da solidariedade entre os homens de boa vontade em toda a América Latina, em especial nos países em que existem os Institutos Jacques Maritain – em homenagem sobretudo à sua doutrina do humanismo integral intimamente ligada ao princípio da solidariedade – que faz com que se busque a promoção do direito ao emprego e do combate ao desemprego em favor dos trabalhadores e pobres nesses tempos de corona vírus.
O princípio da solidariedade traduz-se, por exemplo, nas políticas públicas com medidas como a adotada pelo Brasil através de programa emergencial de manutenção de emprego e renda, implicando medidas trabalhistas entre empregados e empregadores para suspensão do contrato de trabalho ou redução da jornada de trabalho, ficando o Estado com a obrigação do pagamento de abonos emergenciais e proporcionais em relação à suspensão do contrato de trabalho e à redução da jornada diária de trabalho – Medida Provisória nº 936, de 01 de abril de 2020, depois transformada em lei federal.
Essa medida provisória beneficiou especialmente milhares de micro e pequenas empresas, que empregam 60% da força de trabalho brasileira, viabilizando sua atividade econômica, bem como milhões de trabalhadores, que tiveram seus postos de trabalho mantidos com a garantia do recebimento do abono emergencial pelo Estado.
Outra medida importante, ainda em estudo pelo Estado brasileiro, é a instituição da renda básica para os pobres e trabalhadores desempregados.
Trata-se, portanto, de política pública de Estado e não de governo, já que a Constituição Federal brasileira de 1988 prevê em seu artigo 3º, inciso I, que constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, dentre outros, construir uma sociedade livre, justa e solidária.
Mas, mesmo que fosse uma política pública justa e solidária de determinado governo de plantão, em relação ao qual se pode estar em oposição politica e partidária, é dever de todo cidadão, como pessoa de boa vontade, aplaudi-la por combater os efeitos maléficos da pandemia do novo corona vírus no que concerne ao direito humano do pleno emprego, conforme nos recomenda o Papa Francisco, em sua homilia proferida na Basílica de São Pedro, em 29 de junho de 2020, quando diz:
“Peçamos a graça de saber rezar uns pelos outros. São Paulo exortava os cristãos a rezar por todos, mas em primeiro lugar por quem governa (cf. 1 Tim 2, 1-3) …Deixemos que Deus os julgue! Nós rezemos pelos governantes. Rezemos…Precisam da nossa oração. É uma tarefa que o Senhor nos confia”.
No entanto, pode-se dizer que certamente a medida mais eficaz de solidariedade em função do direito ao trabalho seja uma política pública de empregabilidade resultante da atividade econômica exitosa das empresas privadas, para o que muito concorre o princípio da subsidiariedade, lembrando a afirmação acima mencionada do Papa Francisco, na Encíclica Fratelli Tutti, da íntima dependência entre os princípios da solidariedade e da subsidiariedade.
Para tanto, é de se examinar o conceito do princípio da subsidiariedade e sua relação complementar com o princípio da solidariedade.
É mais uma vez o Compêndio da Doutrina Social da Igreja, em seu Capítulo IV, inciso IV, que, ao tratar do princípio da subsidiariedade, descreve:
“A exigência de tutelar e de promover as expressões originárias da sociabilidade é realçada pela Igreja na Encíclica Quadragésimo anno, em que o princípio da subsidiariedade é indicado como princípio importantíssimo da filosofia social… Com base nesse princípio, todas as sociedades de ordem superior devem propor pôr-se em atitude de ajuda (subsidium) – e portanto de apoio, promoção e incremento –em relação às menores…O princípio da subsidiariedade protege as pessoas dos abusos das instâncias sociais superiores e solicita estas últimas a ajudarem os indivíduos e os corpos intermédios a desempenhar as próprias funções. Este princípio impõe-se porque cada pessoa, família e corpo intermédio tem algo de original para oferecer à comunidade”.
A propósito, Jacques Maritain em sua importante obra de filosofia política, escrita em 1953, denominada o Homem e o Estado, afirma o seguinte:
“Assim, não só a comunidade nacional, mas também todas as comunidades da Nação, se integram na unidade superior do corpo político. Mas o corpo político também contém, em sua unidade superior, as unidades domésticas, isto é, as famílias, cujos direitos e liberdades essenciais lhe precedem, bem como um grande número de outras sociedades particulares que procedem da livre iniciativa dos cidadãos e deveriam ser tão autônomas quanto possível. Eis porque o elemento pluralístico é inerente a toda sociedade verdadeiramente política. A vida familiar, econômica, cultural, educativa, religiosa, tem tanta importância para a própria existência e prosperidade do corpo político como a própria vida política…Visto como, na sociedade política, a autoridade vem de baixo, através do povo, é lógico que todo o dinamismo da autoridade no corpo político deva ser constituído por autoridades particulares e parciais, sobrepondo-se umas às outras, até chegar à autoridade suprema do Estado…Não há dúvida de que todas as coisas grandes e poderosas têm uma tendência instintiva e uma tentação especial a ultrapassar os seus próprios limites. O poder tende a aumentar o poder; a máquina do poder tende incessantemente a expandir-se; a máquina suprema legal e administrativa tende a uma autossuficiência burocrática e gostaria de considerar-se a si mesma como um fim e não como um meio. Aqueles que se especializam em assuntos relativos ao todo tem a propensão de se julgar como o todo: os estados-maiores vêm a considerar-se como sendo todo o exército, as autoridades da Igreja como sendo toda Igreja, o Estado como sendo todo o corpo político”
O grande entrave do desenvolvimento do princípio da subsidiariedade como complemento do princípio da solidariedade para a promoção do direito ao emprego e ao combate do desemprego é a hipertrofia do Estado sobretudo na atividade econômica no lugar da empresa privada.
Deve-se, porém, entender por empresa privada, segundo Maritain em O Homem o Estado, aquela que, pela forma de socialização, isto é, com conotações personalistas e pluralistas, institui-se com um processo integração social através do qual a associação numa determinada empresa se estende não apenas ao capital invertido pelo empresário, mas também aos trabalhadores, com sua participação na gestão e na propriedade por meio de ações, enfim uma empresa privada estruturada como uma “comunidade de trabalho”, no dizer de Maritain em sua obra Os direitos do homem e a lei natural.
A propósito, sobre essa questão, o Papa São João Paulo II, em sua Encíclica Centesimus Annus, propugna por uma sociedade de trabalho com a empresa livre e participativa na vida social e econômica, sendo um contraponto às empresas ainda estatizadas, como nos sistemas socialistas, em que a liberdade econômica inexiste, em desrespeito ao direito natural.
Ao Estado, na ordem econômica, cabe uma função supervisora e fiscalizadora da atividade econômica exercida pela empresa privada estruturada democraticamente com a participação dos trabalhados em todas as dimensões de sua vida interna.
No Brasil, o Estado atua, por exemplo, na atividade econômica através das Agências Reguladoras dos meios de comunicação, água, etc., e através do CADE (Conselho Administrativo de Desenvolvimento Econômico) do Ministério da Justiça, para controle da aplicação da legislação antitruste, um vez que a atividade econômica, pelo artigo 173 da Constituição Federal, deve ser exercida pela empresa privada.
Ademais, o Estado moderno, sobretudo em países de economia em desenvolvimento, como na Amárica Latina, tem o papel de promover políticas públicas nas áreas da saúde, educação e segurança pública, na linha da descentralização e desestatização, num regime personalista e pluralista, segundo Maritain em o Homem e o Estado.
É também Maritain, em o Homem e o Estado, quem afirma que o Estado administra mal a atividade econômica, por diversas razões, como a falta da continuidade administrativa, em razão da alternância do poder, e o exemplo mais notável é que mais de 60% dos lares brasileiros não têm serviço básico de esgoto em razão da incúria e falta de recursos do Estado para promovê-lo.
Com a aprovação legal da descentralização e desestatização do serviço básico de saneamento, prevê-se um investimento privado de 700 bilhões de reais (140 bilhões de dólares), com o prazo de 10 anos para a solução universal de do saneamento básico no Brasil.
Em conclusão, é de se esperar que o direito ao trabalho e ao combate ao desemprego, como direito humano, profundamente atingido na América Latina em tempos do novo corona vírus (Covid 19), seja recuperado com a aplicação à realidade social e econômica dos países membros dos princípios da solidariedade e da subsidiariedade, fazendo com que, especialmente, uma política pública de desenvolvimento econômico e da promoção da atividade econômica exercida pela empresa privada, em especial as micro e pequenas empresas, promova a empregabilidade e a renda para os trabalhadores desempregados, e, para os pobres, a efetivação de uma política pública de renda básica.