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JOÃO PAULO II E JACQUES MARITAIN: UMA NOVA LAICIDADE?

14 jun 1999

Por Francisco Catão
São Paulo, 14 de junho de 1999

O Instituto Jacques Maritain do Brasil tem pelo menos três razões, para dedicar uma sessão à Encíclica Fides et Ratio, publicada o ano passado: é um pronunciamento solene do Papa, que merece especial atenção quando trata de matéria tão central no cristianismo; menciona Jacques Maritain como exemplo de filósofo cristão; finalmente, porque aborda a questão que comanda o posicionamento cristão em tudo que concerne ao mundo leigo da cultura, e portanto, do direito, da sociedade, da política, da educação, da arte etc. que têm sido objeto de nossas preocupações no Instituto, aqui em São Paulo.

A Encíclica

O Concílio Vaticano II dedicou-se à “atualização” da Igreja, seu aggiornamento. É compreensível que haja provocado uma polarização das atenções nos problemas intra-eclesiais, ou mesmo, eclesiásticos. As próprias questões temporais eram postas em termos da posição da Igreja em face da sociedade civil, da economia, do Estado, da revolução, do desenvolvimento, da moral, da comunicação, enfim, eram colocadas em termos, por assim dizer, políticos, como se para os católicos o principal fosse cuidar da comunidade cristã no mundo. Será que não merecíamos então a admoestação de Jesus a Marta, que se ocupava de muitas coisas e deixava escapar o único necessário?

A Encíclica rompe a monotonia político-eclesiástica velha de séculos. Desde o início coloca o problema do ser humano, de todos os seres humanos, diante da existência: quem sou eu? De onde venho e para onde vou? Por que existe o mal? Que existirá depois dessa vida? (n. 1). Não é digno de ser chamado humano quem não dedica um tempo a essas questões, por mais empenhado que esteja na transformação cristã da sociedade… Entenderemos mal a Fides et Ratio, se não nos colocarmos, como seres humanos, a questão religiosa e filosófica fundamental do que dá sentido à vida.

Nesse contexto a Encíclica tem um objetivo: lembrar o papel central que desempenha a razão na vida humana. Isso vale para todos os humanos, inclusive, e talvez até sobretudo, para os que nos consideramos cristãos, chamados por Jesus a testemunhar da vida do Espírito, como filhos do mesmo Pai. Num tempo em que a irracionalidade, ou, pelo menos, a a-racionalidade parece ter tomado conta do religioso, reduzindo-o ao sectarismo de grupo, à emoção ou a simples produto a ser divulgado no mercado, João Paulo II escreve uma encíclica para defender os direitos e a autonomia da razão, mesmo na religião, quando se trata de fé! É o que faz ao mencionar seu objetivo, no fim do capítulo V, que encerra a primeira parte do documento:

Senti, escreve na primeira pessoa, a urgência de confirmar, por meio desta carta encíclica, o grande interesse que tem a Igreja pela filosofia; mais ainda, a ligação íntima do trabalho teológico com a investigação filosófica (n. 63). [Curiosamente o tradutor – traditore – acrescentou “da verdade”!]

Esse texto constitui a articulação maior entre os princípios, na primeira parte, e as orientações, contidas na segunda parte. A Encíclica é, pois, uma reivindicação dos direitos imprescritíveis da razão, inclusive no domínio da fé: Uma apologia do indispensável uso da razão pelo ser humano, em toda a sua vida, inclusive e, sobretudo talvez, na religião.

Com efeito, a Encíclica se compõe de sete capítulos, precedidos de uma introdução e seguidos de uma conclusão. Sua estrutura, porém é simples.

Na introdução e na conclusão discorre-se sobre a grandeza do pensamento humano, respectivamente nas suas origens socráticas e no papel que desempenha na história, humanizando a humanidade.

Nos cinco primeiros capítulos, primeira parte, segue-se um itinerário linear, histórico, mas dialético. Deus se revelou por intermédio de sua Sabedoria, mas fala à inteligência, ao pensamento (c. 1). Por isso de fato a fé, adesão a Deus e acolhimento de sua Palavra, é inseparável, do ponto de vista concreto, do pensamento, da razão. Somos assim levados a dizer, ao mesmo tempo, creio ao pensar (credo ut intellegam, c. 2), a fé me faz pensar epenso ao crer (intellego ut credam, c. 3), o pensamento me leva a crer. Entre fé e razão há pois um relacionamento como que circular, essencial à vida do espírito, lembrado no capítulo seguinte (c. 4), dedicado às relações entre a fé e a razãol, tais como se verificaram, ou não, na história. Percebe-se, diz João Paulo II, uma

harmonia fundamental entre o conhecimento filosófico e o conhecimento da fé: a fé requer que seu objeto seja compreendido com a ajuda da razão; por sua vez a razão, no apogeu de sua indagação, admite como necessário aquilo que a fé apresenta (n. 42).

E conclui:

À luz disto, creio justificado meu apelo veemente e incisivo para que a fé e a filosofia recuperem aquela unidade profunda que as torna capazes de serem coerentes com sua natureza, no respeito da recíproca autonomia. Ao desassombro (parresia) da fé deve corresponder a audácia da razão (n. 48).

É esta mesma unidade de natureza entre fé e filosofia que justifica as “intervenções do magistério em matéria filosófica” (c. 5):

A Igreja não propõe uma filosofia própria, nem canoniza uma determinada corrente filosófica em detrimento de outras. A razão profunda está no fato de que a filosofia, mesmo quando integra a elaboração do discurso teológico, deve proceder segundo seus métodos e regras. Do contrário, se utilizasse processos racionalmente incontroláveis, não haveria garantia de que permanecesse orientada para a verdade. De que adiantaria uma filosofia que não agisse à luz da razão, segundo princípios próprios e metodologia específica? A autonomia da filosofia se baseia no fato da razão estar orientada, por natureza, para a verdade, e dotada dos meios necessários para a alcançar […]

Não é pois função nem competência do Magistério intervir para preencher lacunas do discurso filosófico, mas é sua obrigação reagir de forma clara e vigorosa, quando teses filosóficas discutíveis ameaçam a reta compreensão do dado revelado […], perturbando a simplicidade e a pureza da fé do povo de Deus” (n. 49).

Lançados, pois, os fundamentos da relação recíproca e circular entre a fé e a razão, e definido o ângulo sob o qual o Magistério é chamado a tratar de filosofia, sem lhe ferir a autonomia própria, a segunda parte da Encíclica discute o inter-relacionamento histórico da fé com a razão (c. 6), destacando algumas orientações práticas decorrentes dos princípios até aqui considerados (c. 7).

A interação fé-razão

Uma das grandes dificuldades a serem superadas, para se compreender o pensamento de João Paulo II, é a tendência que temos de considerar o cristianismo, ou até mesmo, o catolicismo, de um ponto de vista predominantemente sociológico e psicológico, como uma das grandes, talvez a maior, tradição religiosa da humanidade. Ora, esse eclesiocentrismo contraria o que melhor caracteriza o catolicismo, é quase uma tautologia lembrá-lo, sua universalidade, a certeza básica de que a Revelação cristã é expressão da verdade profunda que preside ao cosmos, à existência humana e à história.

“A Palavra de Deus, escreve João Paulo II, destina-se a todo ser humano, de qualquer época ou lugar da terra. E o ser humano, pode-se dizer, é naturalmente filósofo – amigo da sabedoria, alguém que, na vida, busca a sabedoria. Por sua vez a teologia, como elaboração reflexiva e científica da compreensão da palavra divina à luz da fé, não pode deixar de recorrer às filosofias que vão surgindo ao longo da história” (n. 64).

João Paulo II, em contraposição à “desconfiança radical na razão que evidenciam as conclusões mais recentes de muitos estudos filosóficos, (depois de denunciar) perigosas recaídas no fideísmo, que não reconhece a importância do discurso filosófico para a compreensão da fé” (n. 55), mostra detalhadamente o papel decisivo da razão na elaboração de toda a teologia, tanto na escuta da fé como na sua compreensão, incluindo a exegese bíblica, a teologia, dogmática, fundamental e moral (nn. 65-68). Enfrenta corajosamente a tendência a valorizar as perspectivas teológicas particulares, em detrimento da consideração do que há de universal, na fé e na razão. Faz importante digressão sobre a questão das culturas e o conceito finalmente ambíguo de inculturação (nn. 65-72). Sublinha, finalmente, a necessidade de

“se instaurar a justa relação entre teologia e filosofia, que deve se pautar por umareciprocidade circular […] A razão do fiel exerce suas capacidades na busca da verdade dentro de um movimento circular que, partindo da palavra de Deus, procura alcançar uma melhor compreensão da mesma. Movendo-se dentro desses dois pólos – a palavra de Deus e sua melhor compreensão – a razão é prevenida e de certo modo guiada, para evitar percursos que a distanciariam da Verdade, mais ainda, é estimulada a explorar caminhos que sozinha nem sequer suspeitaria poder percorrer.

Esta relação de reciprocidade circular com a palavra de Deus, acaba enriquecendo também a filosofia, pois a razão descobre assim novos e inesperados horizontes” (n. 73)

Fiel a seu enfoque predominante, a Encíclica comprova a circularidade reciprocamente enriquecedora fé-razão a partir da história, isto é, da vida de grandes pensadores cristãos, teólogos e filósofos. É nosso importante parágrafo 74, em que vem mencionado o nome de Jacques Maritain.

Lendo-o de perto, aprecia-se a engenharia. Citam-se dois padres da Igreja, um oriental, Gregório de Nazianzeno, outro ocidental, Agostinho. Poder-se-ia epilogar sobre os critérios dessa escolha. Citam-se três doutores medievais, um pioneiro beneditino, Anselmo de Catuária, e dois mestres consagrados da alta escolástica, um franciscano, Boaventura, e um dominicano, Tomás de Aquino. Citam-se em seguida, nove pensadores dos últimos duzentos anos, cinco ocidentais, Newman, Rosmini, Maritain, Gilson e Edith Stein, dos quais, tirando o historiador, somente Maritain representa o tomismo, e quatro russos, Soloviev, Florenski, Tchaadaev, Losski. João Paulo II procura assim deixar clara a diversidade de pensamento dentre os cristãos. Não louva nem avaliza nenhuma doutrina (doctrinae aestimationem prodere), não lhes recomenda o ensinamento ou a filosofia, mas sua coragem na pesquisa (magnanima investigatio), e os propõe como exemplos significativos (exempla praestantiora), “cujo itinerário espiritual não pode ser ignorado por quem busca a verdade, em benefício dos humanos” (spiritalis itineris contemplatio non poterit quin progredienti veritatis inquisitioni proficiat atque usui consecratoriorum in hominum utilitatem).

João Paulo II leva pois ao extremo a distinção radical entre doutrina e exemplo, com base, por um lado, no fato de que a palavra de Deus não está vinculada a nenhuma cultura, nem, portanto, a nenhuma filosofia, por outro, na autonomia própria da razão, cujo procedimento não se pode prender a nenhum critério exterior à simples verdade, tal qual à concebe. O mesmo critério o leva a uma posição nova e surpreendentemente radical, no caso de são Tomás. A recomendação da filosofia e da teologia de Tomás de Aquino que faz hoje o Magistério, não se refere, determina João Paulo II, à doutrina do mestre medieval, mas unicamente a seu exemplo:

“Compreende-se porque o Magistério tantas vezes louvou os méritos de são Tomás e o propôs como guia e exemplo dos estudos teológicos. Não se tratava de optar por determinadas questões filosóficas, nem de impor certas posições particulares. A intenção do Magistério era, como ainda o é, de indicar são Tomás como exemplo autêntico a todos os que buscam a verdade. Em seu pensamento, as exigências da razão e o vigor da fé foram elevados ao extremo, num grau jamais alcançado. Respeita totalmente a Revelação, sem nenhum prejuízo do que caracteriza o procedimento racional” (n. 78).

Temos razões demais para duvidar da exatidão histórica de tal interpretação do ensino anterior do Magistério, que, muitas vezes recomendou pura e simplesmente a doutrina mesma de Tomás de Aquino, ou até mesmo, o tomismo, doutrina de um certo número de seus intérpretes oficiais. Contudo não podemos desconhecer o alcance da posição que toma oficialmente João Paulo II, reformulando a de seus predecessores, dizendo simplesmente que, fascinados pelo exemplo do Doutor Angélico, suas recomendações, no fundo, não constituíam um aval do Magistério à filosofia nem à teologia de são Tomás, mesmo porque, a Revelação não se pode vincular a nenhum pensamento particular, a nenhuma opinião ou corrente filosófica.

De diversis philosophiae statibus

Voltando-se então para a filosofia propriamente dita, sem abandonar a perspectiva histórica, João Paulo II estuda, no importante parágrafo segundo do sexto capítulo, o que chama de diversas situações da filosofia.

Na realidade da história, tendo diante dos olhos o caso particular do Ocidente, em que prevalece a tradição religiosa cristã, a filosofia se relaciona com a fé de três maneiras:

– ou se constrói sem interferência da Revelação (a Revelatione evangelica penitus distractam),

– ou se desenvolve, como filosofia, sob a influência da fé (ars christiane philosophandi, vitaliter cum fide conjuncta),

– ou é efetivamente assumida pela fé, na análise crítica da Revelação (ipsa theologia ad philosophiam provocat).

Das três situações, do ponto de vista filosófico, a segunda é a mais original. Situação a que se dá habitualmente o nome de filosofia cristã. Mas o termo é equívoco. A denominação era muito discutida há sessenta anos. Pensadores como Émile Bréhier, Heidegger, e Jaspers negavam-lhe a legitimidade, apelando para o fato de que qualquer fé só teria por conseqüência poluir a racionalidade do pensamento filosófico.

Diversos pensadores cristãos, como Blondel, Gilson, Maritain e Gabriel Marcel, por exemplo, contra atacaram, lembrando a riqueza filosófica da tradição cristã, mas, ao mesmo tempo, procurando justificar racionalmente a realidade de uma filosofia cristã. Todos admitiam, sem dificuldade, por ser uma evidência histórica, que o cristianismo exerce alguma influência na filosofia, ainda que tal influência fosse considerada perniciosa. Mas a justificação de uma filosofia cristã passava, então por dois caminhos: a unidade do espírito que encontra na fé o caminho para satisfazer seu desejo profundo de Verdade ou, por outro lado, a necessidade da Revelação, para que o ser humano pudesse pensar com segurança os fundamentos mesmo do exercício da razão. Blondel explorava o primeiro caminho, Maritain o segundo.

Numa conferência na Bélgica em 1931, depois publicada em livro, De la philosophie chrétienne, em 1933, Jacques Maritain, cioso do que tem de próprio o raciocínio filosófico – o procedimento racional em busca de uma verdade que lhe é proporcional – justifica a filosofia cristã como um complexo resultante da reflexão, por certo filosófica, de um cristão, mas que chega a se constituir como uma doutrina filosófica específica, cujo o exemplo maior é a filosofia de Tomás de Aquino.

Na realidade, Maritain foi vítima de dois fatores que, conjugados, o impediram de formular melhor sua conclusão. Por um lado a herança do tomismo para o qual se converteu, marcado pelas personalidades do Pe. Clérissac e do Pe. Garrigou Lagrange, como ele mesmo o confessa inúmeras vezes, por outra, a necessidade que via de resistir ao contexto laico, de oposição à fé, em que não se reconhecia a filosofia cristã, por considerá-la uma violação à autonomia da razão. A razão devia ter sempre a última palavra, não podendo pois, de forma alguma, submeter-se a qualquer verdade vinda de fora, muito menos a uma revelação pretendidamente divina.

Indo mais a fundo, diríamos que Maritain aceita, como tomista, a distinção real entre duas ordens de conhecimento, a ordem natural e a ordem sobrenatural, esta, presidida pela Revelação, a que se adere pela fé, que é dom de Deus, a primeira, pela razão, inerente à natureza humana. Distinção, porém, que como hoje o sabemos, pelo menos sob tal forma, não é de são Tomás, mas foi elaborada no século XVI, em continuidade com o nominalismo e no contexto das controvérsias protestante e jansenista. Na perspectiva de tal distinção, falar em autonomia absoluta da razão, seria cair na “separação”, agora denunciada por João Paulo II. Falar em circularidade, desconhecer a gratuidade do sobrenatural. Para salvaguardar ao mesmo tempo a gratuidade do sobrenatural e a integridade da natureza, era preciso separar o processo racional de conhecer do procedimento de conhecer específico da fé. Fé e razão teriam, cada uma em seu domínio específico de verdades, como constituiriam domínios específicos, a Igreja e o Estado, o pensamento cristão e o pensamento leigo, a escola cristã e a escola leiga, a arte religiosa e a arte pura e simples, o direito divino e canônico, e o direito humano etc.

A grande novidade da Fides et Ratio, que precisa ser enfrentada com sabedoria todo Instituto Jacques Maritain, é o fato de que, ao mesmo tempo que cita Maritain como exemplo de filósofo cristão, afasta-se da teoria maritainiana da filosofia cristã e adota uma posição que está muito mais em continuidade com o pensamento blondeliano de então. A relação fé – razão se pensa antropologicamente, independentemente da rígida distinção entre ordem natural e sobrenatural, como inherente à vocação do Espírito. Foi a tese magistral defendida por Henri De Lubac no famoso Surnaturel, études historiques (1942), tese, como hoje o sabemos, implicitamente seguida pela grande maioria dos pensadores cristãos desde os tempos de Malebranche, que procuram pensar no amplo cenário da Revelação, sob a influência da fé, mas em continuidade com filosofia moderna, partindo do sujeito, em que fé e razão não constituem dois domínios estanques, mas dois processos de se alcançar a verdade, que coroa todos os esforços em busca de nos realizarmos como humanos, em busca de Deus.

O desafio maritainiano

A mudança que se operou na Igreja em matéria de cultura, filosofia, teologia, interpretação da Bíblica, posicionamento em relação ao mundo moderno, por ocasião e a partir do Vaticano II, explica a nova proposta da relação entre fé e razão, que finalmente acaba de fazer João Paulo II, dando importante passo na recepção do Concílio: circularidade e autonomia, por conseguinte, continuidade entre a exploração filosófica da verdade e o conhecimento proposto pela revelação, fé e razão, não mais como dois domínios separados do saber, senão como dois caminhos para se chegar à verdade, ou, mais exatamente, como “duas asas pelas quais o espírito humano se eleva para a contemplação da verdade” (Fides et ratio binae quasi pennae videntur quibus veritatis ad contemplationem hominis attolitur animus) (início da Encíclica).

Na sua sensibilidade de cristão e de filósofo, Maritain percebeu logo o encaminhamento do Concílio. Encarou-o como um desmentido à sua filosofia no que tinha de cristã, vinculada a uma doutrina precisa, a de Tomás de Aquino, e se posicionou como o leigo que sempre fora, desde antes de sua conversão, e que lhe aparecia agora como a melhor saída para guardar sua identidade e se distanciar do mundo de bobagens que, a seu ver, se passou a dizer na Igreja, em nome da fé e do pensamento cristão. É interessante lembrar o prólogo à sua obra famosa: Le Paysan de la Garonne. Un vieux laïc s’interroge à propos du temps présent. Em exergo, um pretendido provérbio chinês: Ne prenez jamais la bêtise trop au sérieux. No prólogo, simbolicamente datado de 31 de dezembro de 1965, ano do encerramento de Vaticano II, Maritain escreve:

O subtítulo desse livro não precisa ser explicado. Observarei apenas que na expressão “velho leigo”, o adjetivo “velho” tem dois sentidos: diz que o autor é um octogenário – Maritain estava com 83 anos – mas também que é um leigo inveterado.

Quanto ao título, explica-se por não se ter nenhum Danúbio na França e pelo fato dos Irmãozinhos de Jesus, com quem moro, residirem em Tolouse, banhada pelo Garonne. Por isso, tendo em vista meus objetivos nesse livro, considerei o Garonne como digno equivalente do Danúbio. Como se sabe, a expressão um camponês do Danúbio, ou, no caso, do Garonne, é alguém que a despeito das conveniências, dá, às coisas, seu verdadeiro nome. Modestamente, embora com medo de não estar à altura da tarefa (mais difícil do que se pensa), é o que gostaria de fazer (Jacques MARITAIN, Le paysan de la Garonne, Paris, Desclée de Brouwer, 1966, Avant-propos).

O livro é um primor de sabedoria e de ironia. Sabedoria porque Maritain procura sinceramente descobrir as grandes carências espirituais do nosso tempo, de ironia porque ri com maestria das falsas soluções que se apontam, inclusive na Igreja, dando origem a um verdadeiro festival de asneira, como diria o provérbio chinês.

O que Maritain critica nos cristãos que abandonaram o tomismo, não é o fim visado, o diálogo universal das culturas, a libertação da inteligência, o respeito às pessoas e a solidariedade entre todos os humanos, mas os caminhos que se propõem, na ilusão de conseguir tão elevados e nobres objetivos.

No âmago, porém, de Le paysan de la Garonne, está a distinção pretendidamente tomista entre espiritual e temporal, como formando duas ordens simétricas, com suas exigências intrínsecas, mas unidas de historicamente, num mundo infetado pela mentira, pelo erro e pelo pecado, que só pode ser salvo pela graça.

Sabemos o impacto que teve entre nós o que se considerou a mudança de Maritain nos seus últimos anos de vida. Afastado das preocupações temporais e consagrado inteiramente à contemplação e ao ensino da Teologia na comunidade dos Irmãozinhos de Jesus em Tolouse, Maritain deixou de ser o pensador do progressismo católico. Em geral cobrimos esse período com um silêncio obsequioso e preferimos falar do Maritain dos anos anteriores, deHumanisme intégral, preocupado com a cultura, a política, a educação e a arte, voltado, portanto, para o diálogo com o mundo moderno. A Fides et Ratio, generalizando uma posição teórica que contrasta com a doutrina maritainiana da filosofia cristã, porém, nos leva a perguntar: Até que ponto podemos continuar falando da atualidade de Maritain? Resistindo à “atualização” conciliar, o Maritain de Le Paysan de la Garonne não nos estaria induzindo à posição de oposição ao mundo e à cultura moderna, que o caracterizava desde o tempo deAntimoderne?

Não se pode resolver a questão a priori. É certo que a conversão de Maritain, na sua mocidade, depois do pacto feito com Raïssa no Jardin des Plantes, significou uma ruptura com o mundo moderno, que ele fustigou duramente em Le songe de DescartesTrois Réformateurs e mesmo, sob certos aspectos, em Réflexions sur l’intelligence eLes degrés du savoir. Os fundamentos doutrinários de sua posição se encontram em De la philosophie chrétienee em Réligion et culture.

Mas o Maritain leigo, curado do direitismo de Maurras e excitado pela revolução espanhola, acabou prevalecendo já em Humanisme intégral, como em Du régime temporel et de la liberté, L’homme et l’État, como, aliás, já se havia feito sentir em Art et Scolastique, na famosa Réponse à Jean Cocteau e na Lettre sur l’indépendance, e vai repercutir em Pour une philosophie de l’éducation, assim como em Les droits de l’homme et la loi naturelle, Christianisme et démocratie Principes d’une politique humaniste.

Há pois, a nosso ver, em Jacques Maritain, uma dicotomia que precisa ser estudada entre a teoria do pensamento cristão e a prática desse mesmo pensamento por um “leigo inveterado”, que, no fim da vida, volta a ser ele mesmo. Onde pesquisar a causa dessa espécie de incoerência de um filósofo cristão, que termina sua vida como um sábio, inteiramente voltado para as coisas de Deus?

Penso que aí se desenha uma enorme tarefa para o Instituto Jacques Maritain do Brasil, onde, justamente, o que nos reúne é o humanismo de Maritain manifestado principalmente na sua obra jurídica e política. Se estamos dispostos a levar a sério nosso nome e nossas fidelidades, não nos podemos furtar ao aprofundamento do que chamaria a laicidade de Jacques Maritain. Quem sabe ela não nos abre para um dos temas centrais do pensamento cristão nos dias de hoje: a nova laicidade?

A nova laicidade

Entende-se por nova laicidade a compreensão da autonomia do temporal. Longe de se opor à vocação sobrenatural do ser e da comunidade humanos, como se pensava nos tempos da filosofia separada, o temporal se integra às exigências do espírito em sua condição carnal e se deve considerar em continuidade com o Evangelho de Jesus, sem se dobrar, porém, às pretensões monopolistas do sagrado, que constituem a base do poder dos clérigos, na estruturação da sociedade.

Vaticano II, estabelecendo que a Igreja é, antes de tudo, a comunidade dos fiéis que, pela sua vida no mundo, são sacramento da salvação universal, não só valorizou o sacerdócio universal dos fiéis, base do sacerdócio ministerial, que está a serviço do primeiro, como mostrou a importância decisiva da cristianização da vida leiga, caminho inevitável de desclericalização da imagem da comunidade cristã e de sua inserção no mundo da cultura, da política, da educação, da arte, etc. que precisa ser trilhado, na perspectiva da nova evangelização.

Fides et Ratio, defendendo a autonomia da razão, defende, em última análise, a autonomia do temporal, a autonomia dos leigos, não só no mundo, mas também na Igreja, pois como a autonomia da razão de que fala João Paulo II não vale unicamente para a teologia, mas também para a filosofia, também a autonomia dos leigos, a prioridade absoluta dos direitos humanos, não vale só para a sociedade, mas também para a Igreja!

Esboça-se assim, na passagem do milênio, um programa novo de renovação da Igreja. O Concílio chega à vida da inteligência cristã e nos convida a repensar toda a filosofia do agir cristão no mundo.

Nossa tese é de que, apesar de ter sido ultrapassado pelo Concílio na sua concepção de filosofia cristã, na maneira como concebia seu próprio estatuto de filósofo, Maritain continua atual, nosso mestre, na inspiração profunda de seu pensamento e na maneira como abordou de fato os problemas da política, da cultura, da educação, do direito e da arte.

Na inspiração profunda de seu pensamento por causa de seu humanismo, que qualificaria de existencial, pois oHumanisme Intégral só é plenamente compreensível no quadro metafísico que traçou, desde de os Quatre essais sur l’esprit dans asa condition charnelle, em que renovou a antropologia da escolástica clássica, passando pelasSept leçons sur l’être, até, por exemplo, ao Court traité de l’existence et de l’existant.

Na maneira como abordou os problemas temporais, graças à laicidade, na verdade uma nova laicidade, de integração à vocação final do ser humano, como aparece em Primauté du spirituel, laicidade a que ficou sempre fiel, esse leigo inveterado.