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O VETOR CONSTITUCIONAL DA LIBERDADE ECONÔMICA EM TEMPOS DE CORONAVÍRUS

O VETOR CONSTITUCIONAL DA LIBERDADE ECONÔMICA EM TEMPOS DE CORONAVÍRUS

05 maio 2020

O VETOR CONSTITUCIONAL DA LIBERDADE ECONÔMICA EM TEMPOS DE CORONAVÍRUS

Renato Rua de Almeida, advogado trabalhista em São Paulo, professor aposentado de direito do trabalho da Faculdade de Direito da PUC-SP e doutor em direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Paris I (Panthéon-Sorbonne), membro da ABDT, do IBDSCJ e da UJUCASP e presidente do Instituto Jacques Maritain do Brasil (www.maritain.org.br)

Introdução
I-Fundamentos da liberdade econômica na Constituição Federal de 1988
II-Formas para assegurar a liberdade econômica nas crises da economia
III-A liberdade econômica no Brasil em tempos da crise do novo coronavírus (Covid 19)
Conclusão

Introdução

No presente trabalho, pretende-se demonstrar o vetor constitucional da liberdade econômica em tempos de coronavírus (Covid 19) na realidade brasileira dos dias de hoje.
Para tanto, far-se-á numa primeira parte um estudo dos fundamentos da liberdade econômica na Constituição Federal de 1988.
Não se pretende fazer um estudo jurídico sobre a interpretação constitucional dos princípios sobre a liberdade econômica, mas uma visão dogmática da liberdade econômica.
Numa segunda parte, far-se-á um estudo sobre as formas que asseguram a liberdade econômica na crise da economia, valendo-se, para tanto, das medidas trabalhistas utilizadas por alguns países da União Europeia na tentativa de superação das crises econômicas anteriores.
Na terceira e última parte, será examinado o vetor constitucional da liberdade econômica nas medidas trabalhistas utilizadas no Brasil em tempos de coronavírus (Covid 19) para garantir a atividade econômica das empresas privadas, em especial das empresas de pequeno porte e do pleno emprego.

I-Fundamentos da liberdade econômica na Constituição de 1988

Não se pretende fazer um estudo jurídico sobre a interpretação constitucional dos princípios sobre a liberdade econômica na Constituição Federal de 1988.
Pretende-se apenas destacar as normas constitucionais que asseguram a liberdade econômica.
O estudo aprofundado sobre a interpretação constitucional dos princípios da liberdade econômica dentro da ordem econômica há de ser feito no âmbito do direito constitucional (1).
Portanto, dentro do propósito de identificar as normas sobre a liberdade econômica no texto constitucional brasileiro, torna-se necessário, primeiramente, mencionar o Título I dos Princípios Constitucionais da Constituição Federal de 1988, onde o artigo 1º prescreve que a República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito, tendo como fundamentos, entre outros, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa previstos no inciso IV desse dispositivo constitucional.
Assim sendo, na raiz da República Federativa do Brasil encontra-se a livre iniciativa como substrato da liberdade econômica.
É indispensável também mencionar, nessa linha argumentativa, o Título VII da Ordem Econômica e Financeira, onde são localizados no Capítulo I os princípios gerais da atividade econômica.
Estudo aprofundado desses princípios gerais da atividade econômica foi feito pelo constitucionalista José Afonso da Silva (2), jurista e professor emérito da Faculdade de Direito da USP, ao demonstrar que a ordem econômica está fundada na livre iniciativa e na valorização do trabalho humano.
Por conseguinte, na ordem econômica brasileira a livre iniciativa é direito fundamental constitucional que garante a liberdade econômica.
Por sua vez, a liberdade econômica prevista pelo caput do artigo 170 do texto constitucional é complementada, dentre outros princípios, pela propriedade privada (inciso II), pela função social da propriedade (inciso III), pela livre concorrência (inciso IV), pela defesa do meio ambiente (inciso VI), pela redução das desigualdades regionais e sociais (inciso VII), pela busca do pleno emprego (inciso VIII) e pelo tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte (inciso IX) (3).
Ademais, o parágrafo único do artigo 170 do texto constitucional assegura a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica como desdobramento da livre iniciativa e da liberdade econômica.
Já o artigo 173 do texto constitucional garante a prevalência da atividade econômica às empresas privadas e somente será permitida a exploração direta de atividade econômica pelo Estado, quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo.
Vê-se, desta forma, uma preferência constitucional prima facie para que a atividade econômica seja assumida pelas empresas privadas resultantes da livre iniciativa e da liberdade econômica.
O filósofo humanista e cristão Jacques Maritain, que teve papel fundamental na aprovação da Declaração Universal dos Direitos do Homem da ONU, de 10 de dezembro de 1948 (4), afirma que são quatro as características de uma sociedade de homens livres (5).
Uma delas é ser uma sociedade pluralista, compreendendo uma pluralidade de comunidades autônomas do Estado, sendo a empresa privada uma dessas comunidades autônomas, que, na ordem econômica, tem por base a livre iniciativa e a liberdade econômica.
No entanto, Jacques Maritain, ao aprofundar sua visão sobre o conceito de empresa privada, como resultado da liberdade econômica, apresenta um componente de ordem ética no sentido de que a empresa deve ser estruturada como uma “comunidade de trabalho”, com a participação dos trabalhadores na vida da empresa não só nos lucros, mas também na propriedade e na gestão.
Essa ideia de empresa privada é igualmente defendida pela Doutrina Social da Igreja Católica, especialmente na Encíclica Centesimus Annnus do Papa São João Paulo II, publicada em 1991, por ocasião da comemoração do centenário da Encíclica Rerum Novarum de 15 de maio de 1891 do Papa Leão XIII, a qual teve grande influência na criação e no desenvolvimento do direito do trabalho.
No Capítulo IV sobre a propriedade privada e o destino universal dos bens, o Papa São João Paulo II propugna na Encíclica Centesimus Annus por uma sociedade de trabalho com a empresa livre e participativa na vida social e econômica, sendo um contraponto às empresas estatizadas do sistema socialista, em que a liberdade econômica inexiste, em desrespeito do direito natural.
Preconiza também o Papa São João Paulo II na Encíclica Centesimus Annus que a empresa seja uma “comunidade de homens”, assim como Jacques Maritain chamou-a “comunidade de trabalho”, em que, diz ainda o Papa São João Paulo II, “o lucro é um regulador, mas não o único e a ele deve associar a consideração de outros fatores humanos e morais que, a longo prazo, são igualmente essenciais para a vida das empresas”.
Pode-se dizer que esses valores éticos da empresa privada como “comunidade de homens” ou “comunidade de trabalho” estão previstos, ainda que de forma mitigada, pelo artigo 7º, inciso XI da Constituição Federal de 1988, ao prescrever a participação dos trabalhadores nos lucros ou resultados, e, excepcionalmente, a participação na gestão da empresa.
Em complemento, esses mesmos valores éticos estão garantidos de certa forma com a regulamentação da participação dos empregados nos lucros ou resultados da empresa privada pela Lei n. 10.101/2000, da mesma forma com a participação dos trabalhadores na gestão empresarial, nas empresas com mais de 200 empregados, com a eleição de uma comissão de representação dos empregados, na conformidade do artigo 510-A da Consolidação das Leis do Trabalho, com as suas atribuições previstas pelo artigo 510-B do mesmo diploma consolidado, destacando-se a atribuição prevista no inciso I, qual seja a de representar os empregados perante a administração da empresa, e também a atribuição prevista pelo inciso VI, que é encaminhar as reivindicações específicas dos empregados à direção da empresa.
Essas disposições consolidadas sobre a participação dos empregados na gestão das empresas com mais de 200 empregados foram oportunamente instituídas com a promulgação da Lei n. 13.467, de 13 de julho de 2017 sobre a chamada Reforma Trabalhista.
É lamentável que o sindicalismo brasileiro semicorporativista não tenha compreendido a dimensão ética dessa inovação na vida das empresas com mais de 200 empregados, procurando, até onde se sabe, desprestigiá-la talvez por receio infundado de perda de poder, quando são entidades distintas, cabendo à representação eleita dos empregados a participação na gestão, ao passo que a representação sindical existe no ordenamento jurídico para promover a melhoria da condição social dos representados da categoria profissional como um todo.
Essa distinção é feita pela Convenção n. 135 de 1971 da OIT, já ratificada pelo Brasil,
Em conclusão dessa primeira parte, pode-se dizer que a liberdade econômica está garantida no texto constitucional brasileiro pela atividade econômica a ser exercida por excelência pela empresa privada.
Ademais, essa empresa privada deve ser democrática, isto é, eticamente estruturada na medida em que desenvolva a noção da “comunidade de homens”, com a promoção da participação dos empregados nos lucros ou resultados e também na gestão empresarial, como prevê o texto constitucional brasileiro e as formas adotadas, ainda que mitigadas, pela legislação infraconstitucional.
A seguir, a segunda parte desse trabalho, em que são examinadas as formas para assegurar a liberdade econômica nas crises econômicas.

II- Formas para assegurar a liberdade econômica nas crises da economia

Nas crises da economia, procura-se garantir a liberdade econômica, vale dizer a manutenção da atividade econômica das empresas privadas e do pleno emprego, que são os dois princípios mais importantes da ordem econômica de uma Nação democrática e pluralista como o Brasil, buscando-se, entre outras medidas, a ajuda financeira do Estado para as empresas, em especial as de pequeno porte, e também a flexibilização das leis trabalhistas.
Essa flexibilização do caráter protetivo das leis trabalhistas, de caráter imperativo e muitas vezes de ordem pública, em favor dos direitos dos trabalhadores empregados, dá-se pela sua adaptação à uma realidade momentânea provocada pela crise econômica.
No entanto, ela deve sempre respeitar os limites constitucionais de proteção dos trabalhadores, que, no caso brasileiro, são catalogados pelo artigo 7º do texto constitucional.
A propósito, esse tema foi examinado pelo professor Pedro Romano Martinez da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, em Seminário promovido pelo Tribunal Superior do Trabalho em 2016 por ocasião da comemoração dos 75 anos da Justiça do Trabalho e dos 70 anos do Tribunal Superior do Trabalho.
Na ocasião, o jurista português afirmou que, nas crises econômicas, deve-se levar em conta a recuperação da competividade das empresas, a redução do desemprego e a modificação do paradigma tradicional do direito do trabalho.
Esse fenômeno ocorreu em Portugal na crise econômica de 2011 e 2012.
Esse tema foi tratado no 53º Congresso Brasileiro de Direito do Trabalho, patrocinado anualmente pela LTr. Editora Ltda, então coordenado pelo saudoso professor Amauri Mascaro Nascimento, nos dias 24 a 26 de junho de 2013, no 6º Painel denominado “A crise europeia e o Direito do Trabalho”.
Nos anais desse 53ºCongresso Brasileiro de Direito do Trabalho, encontra-se exposição feita por esse autor e apresentada sob o título “Justifica-se a regressão de direitos trabalhistas na Europa diante da crise ? A experiência portuguesa”
Nessa exposição, procurou-se demonstrar que o Estado português, diante da crise econômica, assumiu compromisso pela aprovação da Lei n. 23, de 25 de junho de 2012 para a instituição do Memorando da troika (memorando de entendimento sobre as condicionalidades da política econômica), como resultado de dois importantes acordos de concertação social, que foram o Acordo Tripartido para a Competividade e Emprego, de 22 de março de 2011 e o Compromisso para o Crescimento, Competividade e Emprego, de 18 de janeiro de 2012 (6).
Portanto, a forma encontrada por Portugal para debelar a crise econômica de 2011 e 2012 foi o Estado assumir a aprovação de uma legislação de exceção resultante da concertação social.
Ora, a concertação social é uma forma atípica de negociação coletiva, por meio da qual os parceiros sociais, empresas e sindicatos de trabalhadores, com a presença do Estado, formando um verdadeiro pacto social, procuram estabelecer normas jurídicas trabalhistas a serem validadas pela legislação estatal para o enfrentamento da crise econômica.
A propósito, o artigo 56, alínea c da Constituição da República Portuguesa de 1976 prevê expressamente que são direitos das associações sindicais fazer-se representar nos organismos de concertação social.
No já citado Seminário promovido pelo TST o jurista português Pedro Romano Martinez tratou da matéria em discurso intitulado “Crise econômica e reforma trabalhista na Europa”, que se encontra nos anais do seminário, defendendo a negociação coletiva como caminho para superação de momentos econômicos difíceis.
Para tanto, examinou a questão em quatro países da União Europeia, que são a Alemanha, a França, a Itália e o Portugal, e, em todos eles, a solução encontrada para o combate da crise econômica foi a aprovação de uma legislação que flexibilizou o paradigma protetor do direito do trabalho, como resultado da negociação coletiva típica e também da negociação coletiva atípica, que é a concertação social, como ocorreu em Portugal.
Portanto, o traço comum desses países da União Europeia para a superação da crise econômica foi a utilização da negociação coletiva típica e da concertação social como forma de negociação coletiva atípica, resultando numa legislação estatal que garantisse a atividade econômica das empresas privadas e o pleno emprego.
Para tanto, dois fatores do direito do trabalho coletivo foram fundamentais: liberdade sindical com maior representatividade dos trabalhadores e representação eleita dos empregados nas empresas e sua participação na gestão empresarial, para que esses representantes sentissem melhor a realidade da empresa.
A pronta legislação estatal aprovada para enfrentar a crise das empresas, em especial das empresas de pequeno porte, legitimada pela negociação coletiva e pela concertação social, foi consequência do sistema eleitoral mais representativo para as eleições parlamentares pelo voto distrital puro praticado na França ou no voto distrital misto existente na Alemanha.
No Brasil, durante a crise econômica de 2009, resultante da crise econômica americana, faltaram os requisitos da liberdade sindical e do sistema eleitoral mais representativo, para que fosse encontrada uma solução adequada para o enfrentamento da mencionada crise econômica.
Quanto à questão sindical, nosso sindicalismo semicorporativista é caracterizado pela unicidade sindical e pela representação monopolística da categoria profissional, em desacordo com a Convenção n. 87 de 1948 da Organização Internacional do Trabalho sobre a liberdade sindical, o que o torna pouco flexível nas negociações coletivas típicas e também na concertação social como forma de negociação coletiva atípica para superação da crise econômica (7).
Ademais, a estrutura do nosso sindicalismo impede-o de estar presente nos locais de trabalho, o que o faz desconhecer a realidade das empresas, daí sua falta de flexibilidade para negociar saídas para superação da crise econômica.
Além disso, é praticamente ausente nas empresas a eleição dos representantes dos empregados para participarem da gestão empresarial, salvo nas empresas com mais de 200 empregados.
Quanto à presença do Estado, ela é dificultada pela ausência de uma negociação coletiva representativa e pela inexistência prática da concertação social como forma de negociação coletiva atípica, e ainda é dificultada pela falta de uma representatividade política da Câmara de Deputados, em razão do sistema eleitoral proporcional para as eleições legislativas, que dificulta a formação de uma maioria parlamentar harmônica ideológica e politicamente, cuja maioria é formada de forma heterogênea pelo presidencialismo de coalizão, mas com as consequências políticas nem sempre satisfatórias para a população (8).
Basta lembrar a despedida em massa de 4.200 trabalhadores em 2009 pela Embraer, sem articular medidas substitutas, como férias coletivas, redução da jornada e do salário, suspensão do contrato de trabalho, em parte por certa intransigência em negociar do Sindicato dos Metalúrgicos de São José dos Campos, representante da categoria profissional dos empregados e filiado à Central Sindical Conlutas.
O conflito coletivo foi ajuizado pelo sindicato profissional como dissídio coletivo de natureza jurídica perante o Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região, que julgou abusiva a despedida em massa por falta de informação e negociação prévias, com a condenação da empresa no pagamento de indenização por violação da boa-fé objetiva e seus deveres anexos de informação e negociação prevista pelos artigo 187 e 422 do Código Civil.
Essa decisão paradigmática do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região no processo de dissídio coletivo de trabalho n. 00309200900015004-DC teve grande impacto em todo o Brasil nesse período de crise econômica, levando as empresas a negociarem coletivamente com os sindicatos profissionais na perspectiva de substituírem a despedida em massa por medidas alternativas e menos dramáticas para os trabalhadores como a redução da jornada e salário, suspensão do contrato de trabalho, férias coletivas e outras previstas pelo ordenamento jurídico brasileiro (9).
A Embraer conseguiu com o recurso ordinário interposto ao Tribunal Superior do Trabalho a reforma da decisão regional, afastando por maioria o caráter abusivo da despedida em massa, com o voto divergente e brilhante do relator ministro Maurício Godinho Delgado, acompanhado pelo voto da ministra Katia Arruda, da Seção de Dissídio Coletivo, no processo TST-DC 207660-2009-000-00-00-7.
O fundamento da maioria Seção de Dissídio Coletivo, ao dar provimento ao recurso ordinário, foi no sentido de que o artigo 7º, inciso I, da Constituição Federal, que trata da proteção da relação de emprego contra a despedida arbitrária ou sem justa causa depende de regulamentação por lei complementar.
Mas, nessa oportunidade, a Seção de Dissídio Coletivo do Tribunal Superior do Trabalho deixou de dar a máxima efetividade ao direito fundamental social previsto pelo artigo 7º, inciso I, da Constituição Federal de 1988, a ser interpretado e aplicado como mandamento de otimização, na linguagem de Robert Alexy (10), nos termos do artigo 5º, § 1º texto constitucional e, em razão da dimensão objetiva, que implica sua irradiação por todo o ordenado jurídico infraconstitucional, poderia o órgão colegiado do Tribunal Superior do Trabalho manter a decisão do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região, conforme o voto vencido do ministro relator, valendo-se das cláusulas gerais, em especial a boa-fé objetiva e seus deveres anexos previstos nos artigos 187 e 422 do Código Civil constitucionalizado (11).
No entanto, o órgão colegiado do Tribunal Superior do Trabalho recomendou nessa decisão que, doravante, as empresas evitassem as despedidas em massa não sem antes tentarem a negociação coletiva com os sindicatos profissionais na busca de soluções alternativas e menos dramáticas para os trabalhadores.
Essa decisão, embora sem efetividade executória, reconheceu ao menos implicitamente a justeza da precedência da informação do motivo da causa objetiva da empresa e da tentativa de negociação antes que a despedida em massa se consumasse com efeitos dramáticos na vida dos trabalhadores.
Mas a Embraer não se conformou nem mesmo com essa recomendação do Tribunal Superior do Trabalho, interpondo recurso extraordinário, sob fundamento de inconstitucionalidade da decisão do Tribunal Superior do Trabalho por violação literal ao artigo 7º, inciso I, da CF/88, cuja regulamentação depende de lei complementar, aguardando-se ainda no Supremo Tribunal Federal o voto do relator ministro Marco Aurélio, a ser proferido com repercussão geral nos autos do processo RE 999435.
Na verdade, essa decisão do Supremo Tribunal Federal perde certo interesse, na medida em que a Reforma Trabalhista aprovada pela Lei n. 13.467, de 13 de julho de 2017, em razão do presidencialismo de coalizão do governo Michel Temer, prevê lamentável retrocesso social, ao prescrever no artigo 477-A, da Consolidação das Leis do Trabalho a equiparação da despedida coletiva à despedida individual sem necessidade de autorização prévia de entidade sindical profissional ou de celebração de negociação coletiva, a menos que o próprio Supremo Tribunal Federal declare inconstitucional formalmente esse dispositivo consolidado, nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade, que lhe foram ajuizadas, na medida em que regulamenta a matéria prevista pelo artigo 7º, inciso I, da Consolidação das Leis do Trabalho por meio de lei ordinária, quando o dispositivo do texto constitucional o exige por lei complementar (12).
Vê-se, assim, que o mais paradigmático conflito coletivo de trabalho no Brasil em época de crise econômica não tenha ainda uma solução definitiva, passados mais de 10 (dez) anos de sua eclosão, gerando insegurança jurídica, com prejuízo da produtividade da empresa e do pleno emprego, em razão da ausência da liberdade sindical e de um sistema eleitoral mais representativo para as eleições legislativas que o voto proporcional ainda atualmente existente no Brasils. Se esses dois requisitos existissem na ocasião certamente teriam concorrido para uma solução mais democrática como nos países da União Europeia.
Em conclusão dessa segunda parte, pode-se dizer que as crises econômicas nos países da União Europeia foram resolvidas pela negociação coletiva típica e pela concertação social como forma de negociação coletiva atípica, cabendo ao Estado aprovar, legitimado pelas decisões convergentes dos parceiros sociais e pela representatividade eleitoral das eleições legislativas, uma legislação trabalhista flexível para minorar os efeitos econômicos nefastos à produtividade das empresas e ao pleno emprego.
No Brasil, o principal conflito coletivo da crise econômica de 2009 tornou-se, por falta de liberdade sindical e representação dos trabalhadores nos locais de trabalho e, ainda, em razão da falta de uma maior representatividade política nas eleições legislativas, um verdadeiro impasse com prejuízo do pleno emprego, transformando-se em dissídio coletivo de natureza jurídica a depender de decisões positivistas do Poder Judiciário, deixando de exprimir a justiça que o caso merecia na linha do realismo jurídico e da teoria do justo objetivo do filósofo do direito Michel Villey, saudoso professor da Faculdade de Direito da Universidade de Paris I (Panthéon-Sorbonne) (13).
Enquanto isso, no Brasil, fica-se na esperança de uma reforma completa do sistema sindical brasileiro à luz da Convenção n. 87 de 1948 da OIT sobre liberdade sindical e de uma reforma eleitoral para as eleições legislativas para uma maior representatividade política, a fim de que as crises econômicas futuras sejam solucionadas de uma forma participativa e democrática como nos países da União Europeia.
A seguir, será examinada a liberdade econômica no Brasil em tempos do novo coronavírus (Covid 19) e as medidas trabalhistas adotadas para amenizar as consequências da crise econômica nas empresas e para preservar o pleno emprego.

III-A liberdade econômica no Brasil em tempos de crise do novo coronavirus (Covid 19)

A crise econômica atual no Brasil provocada pela expansão do novo coronavírus (Covid 19), talvez seja uma das mais contundentes na história universal e no Brasil, com fortes reflexos negativos na produtividade das empresas e no pleno emprego.
Diante da inexistência de uma negociação coletiva permeável pelas razões já conhecidas da falta de liberdade sindical e da representação dos trabalhadores nos locais de trabalho, o Estado brasileiro tomou a iniciativa de enfrentamento da crise econômica e apresentou medidas provisórias fundamentadas na relevância e urgência, como exigência do artigo 62 da Constituição Federal de 1988.
Essas medidas provisórias foram fundamentadas na relevância e urgência em razão do estado de calamidade pública previsto pelo Decreto n. 6, de 20/3/2006 e da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do novo coronavírus (Covid 19) de que trata a Lei n. 13.979, de 6 de fevereiro de 2020.
Tais medidas provisórias implicaram a convocação e participação dos empregados, seus sindicatos profissionais e as empresas afetadas pela crise econômica, com a presença do Estado, para debelarem a crise econômica com medidas trabalhistas apropriadas.
Pode-se dizer que essas medidas tomadas pelo Estado brasileiro com a participação dos agentes sociais para o enfrentamento da crise econômica constituíram uma espécie de concertação social atípica, na medida em que a concertação social típica representa um pacto social democrático entre o Estado e os agentes sociais, resultando no compromisso do Estado em transformá-lo em lei.
Nessa hipótese das medidas provisórias, o processo é invertido com o Estado tomando uma iniciativa legislativa para combater a crise econômica e disponibilizando aos agentes sociais normas legais trabalhistas flexíveis para a sobrevivência das empresas, em especial as de pequeno porte, e para a manutenção do pleno emprego.
São basicamente as Medidas Provisórias n. 927, de 22 de março de 2020 e n. 936, de 1º de abril de 2020 que apresentaram medidas trabalhistas flexíveis para mitigarem, com a participação dos empregadores, empregados e sindicatos das categorias profissionais envolvidas, os efeitos nefastos da falta da produtividade das empresas e do desemprego.
O artigo 2º da Medida Provisória n.927, de 22 de maio de 2020 prescreve que empregadores e empregados, em razão da força maior e do interesse público, poderão celebrar acordo individual escrito, sem prejuízo da negociação coletiva, a fim de manterem o vínculo empregatício, com preponderância sobre instrumentos normativos, legais e negociados, respeitados os limites constitucionais.
Já a Medida Provisória n. 936, de 1º de abril de 2020, que instituiu o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e Renda, prescreve em seu artigo 3º que as medidas de ordem trabalhista a serem flexibilizadas são a redução proporcional da jornada e salário e a suspensão temporária do contrato de trabalho, com a previsão de pagamento compensatório pelo Estado aos empregados de um benefício emergencial de preservação do emprego e da renda.
Por sua vez, o artigo 12 da medida provisória n. 936 de 2020 prescreve, ratificando o artigo 2º da Medida Provisória n. 927 de 2020, que, por meio de acordo individual de trabalho ou pelos instrumentos da negociação coletiva de trabalho, poderão ser adotadas a redução proporcional da jornada de trabalho e salário e a suspensão do contrato de trabalho.
A grande questão jurídica que surge dessas medidas provisórias é saber se é válido o acordo individual de trabalho para reduzir proporcionalmente a jornada de trabalho e o salário, na medida em que o artigo 7º, inciso VI da Constituição Federal de 1988 prevê expressamente a irredutibilidade salarial, salvo convenção ou acordo coletivo de trabalho, afastando, consequentemente, o acordo individual do trabalho.
A propósito, o Supremo Tribunal Federal por expressiva maioria afastou a medida cautelar conferida pelo relator ministro Ricardo Lewandowski na Ação Direta de Inconstitucionalidade n.6.363 sobre a Medida Provisória n. 963 de 2020, que pretendia a declaração de inconstitucionalidade dos dispositivos que permitem a celebração de acordo individual de trabalho para a jornada proporcional de trabalho e salário e da suspensão do contrato de trabalho.
A ratio decidendi da decisão do Supremo Tribunal Federal foi no sentido de que se faz necessária uma interpretação sistemática e unitária do texto constitucional, como ensina o constitucionalista português Jorge Miranda (14), em razão de ser a norma sub judice medida de força maior e de ordem pública, não se podendo, destarte, examinar a questão apenas sob o ângulo do artigo 7º, inciso VI, da Constituição Federal de 1988, sem levar em consideração outros valores constitucionais como aquele previsto no artigo 3º, inciso I, do texto constitucional, em que constitui objetivo fundamental da República Federativa do Brasil a constituição de uma sociedade solidária.
Ora, diante das consequências adversas entre nós da epidemia do novo coronavírus, mister se faz estabelecer a validade do acordo individual com os instrumentos da negociação coletiva, como sendo uma forma solidária e mais ágil, em especial no âmbito das empresas de pequeno porte, para a redução proporcional da jornada e salário e da suspensão temporária do contrato de trabalho (15).
Ademais a hipótese do artigo 7º, inciso VI, da Constituição Federal, ao preconizar a convenção e o acordo coletivo de trabalho de trabalho para a redução da jornada e salário, constitui, na verdade, o resultado exitoso do processo de negociação coletiva tendo em vista a superação de conflito coletivo de trabalho.
Diferente é a hipótese ora examinada, em que existe convergência de interesses entre empregadores, empregados e o próprio Estado, que garante o pagamento de benefício emergencial de preservação do emprego e da renda tendo como base de cálculo, na conformidade do disposto no artigo 6º, da Medida Provisória n. 936 de 2020, o valor mensal do seguro-desemprego a que o empregado teria direito, nos termos do artigo 5º, da Lei n. 7.998, de 1990.
Finalmente, pode-se dizer que as Medidas Provisórias em comento tiveram clara intenção de preservar a liberdade econômica prevista pela Constituição Federal de 1988 nos seus artigo 170 e seguintes sobre a ordem econômica, com a manutenção da empresa privada, em especial as de pequeno porte, por serem as que mais empregam, face à crise econômica vivenciada no Brasil nos dias de hoje.
Fica evidente essa opção de proteger a empresa privada pela Medida Provisória n. 936 de 2020, uma vez que, a teor do disposto no artigo 3º, parágrafo único, são excluídas expressamente as empresas públicas e sociedades de economia mista, inclusive suas subsidiárias, do âmbito de sua incidência, sem conflitar com a isonomia prevista pelo artigo 173, § 1º, inciso II, da Constituição Federal, na medida em que, ao garantir a atividade econômica das empresas privadas dentro dos princípios da livre iniciativa e livre concorrência face à crise econômica provocada pelo do novo coronavírus, a Medida Provisória em comento atende à preservação da liberdade econômica prevista pelo Título VII da Constituição Federal de 1988 e a prevalência da exploração da atividade econômica pela empresa privada (16).
Ademais, ao prever o artigo 12, inciso I, da Medida Provisória 936 de 2020 que as hipóteses de redução proporcional de jornada e salário e de suspensão do contrato de trabalho prescritas no artigo 3º dessa Medida Provisória em comento poderão ser celebradas por acordo individual escrito ou pelos instrumentos da negociação coletiva, quando o empregado perceber salário igual ou inferior a R$3.135,00, está-se contemplando especialmente as empresas de pequeno porte, cujos empregados encontram-se em grande parte nessa faixa salarial, e, assim, teriam dificuldades em obter junto aos sindicatos profissionais a celebração de acordos coletivos para redução proporcional da jornada e salário, dentre outras razões por serem empresas com administração mais simples e por ser o sindicalismo brasileiro semicorporativista com todas as consequências adversas muitas vezes apresentadas nas mesas de negociação coletiva.
Pode-se, pois, concluir que, diante da inexistência entre nós de um sindicalismo profissional estruturado à luz da Convenção n. 87 de 1948 da Organização Internacional do Trabalho, fazendo com que muitas vezes sejam inflexíveis para a celebração dos instrumentos de negociação coletiva típica e mais ainda da concertação social para a superação dos efeitos da crise econômica, as Medidas Provisórias n. 917, de 22 de março de 2020 e n. 936, de 1º de abril de 2020 apresentam soluções trabalhistas adequadas para preservação da liberdade econômica com sobrevivência das empresas privadas, em especial as de pequeno porte, e do pleno emprego.

Conclusão

Para a superação das crises econômicas e a preservação da liberdade econômica garantida constitucionalmente na ordem econômica pela prevalência da empresa privada na exploração direta da atividade econômica, são os instrumentos da negociação coletiva típica e a concertação social como forma de negociação coletiva atípica a forma ideal e utilizada em vários países da União Europeia para a superação das dificuldades advindas dessas crises econômicas, tendo em vista a manutenção da produtividade das empresas privadas e o pleno emprego.
Essas formas de solução infelizmente não se aplicaram no Brasil durante a crise econômica de 2009, pelas razões acima expostas, deixando conflitos coletivos sem soluções adequadas como o da Embraer
No Brasil atual, com a crise econômica resultante do novo coronavírus (Covid 19), em razão da falta da liberdade sindical nos termos da Convenção n. 87 de 1948 sobre a liberdade sindical, o que dificulta institucionalmente o nosso sindicalismo semicorporativista ter uma maior abertura para a negociação coletiva, coube ao Estado brasileiro encontrar forma original para promover uma espécie de concertação social atípica, com a edição de medidas provisórias estabelecendo normas trabalhistas flexíveis a serem adotadas pelos trabalhadores, sindicatos profissionais e empresários, mediante acordos individuais escritos ou mediante os instrumentos da negociação coletiva para a sobrevivência das empresas, em especial as de pequeno porte, e do pleno emprego.

Referências bibliográficas

(1)-cf. Luis Roberto Barroso, Interpretação e aplicação da Constituição, Editora Saraiva Ltda., São Paulo, 427
páginas;
cf. Fabrício Antonio Cardim de Almeida, Interpretação constitucional e os princípios da ordem econômica, dissertação de mestrado apresentada perante a Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2009, 226 páginas;
(2)-cf. José Afonso da Silva, Curso de Direito Constitucional Positivo, Malheiros Editores Ltda.,São Paulo, 820 páginas;
(3)-cf. Renato Rua de Almeida, A pequena empresa e a teoria da flexibilização diferenciada, Revista do Advogado da Associação dos Advogados de São Paulo (AASP), São Paulo, v. 1, n. 70, 2003, págs. 72-74;
(4)-cf. André Cáceres, Maritain o pai dos direitos do homem, “in” jornal O Estado de São Paulo, Aliás filosofia, 15/4/2018, E3;
cf. Renato Rua de Almeida, A influência da filosofia dos direitos humanos de Jacques Maritain nas Constituições Brasileiras, “in” www.maritain.org.br, link artigos;
(5)-cf. Jacques Maritain, Os direitos do homem e a lei natural, Livraria José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 152 páginas;
(6)- Renato Rua de Almeida, Justifica-se a regressão de direitos trabalhistas na Europa diante da crise? A experiência portuguesa, exposição feita no 6º Painel denominado A crise europeia e o Direito do Trabalho do 53º Congresso Brasileiro de Direito do Trabalho, promovido pela LTr. Editora Ltda., São Paulo, dias 24 a 26 de junho de 2013, “in” www.renatoruaemarcusaquino.adv.br/publicacoes.htm
(7)-cf. Renato Rua de Almeida, O modelo sindical brasileiro é corporativista, pós-corporativista ou semicorporativista ?, Revista LTr. , São Paulo, ano 77, 2013, págs. 7-15;
(8)-cf. Renato Rua de Almeida, Presidencialismo de coalizão: disfunção do sistema político brasileiro em decorrência do voto proporcional para eleições legislativas, fala apresentada no Encontro Latino-Americano dos Institutos Jacques Maritain do Cone Sul, realizado em Córdoba, Argentina, de 7 a 9 de setembro de 2017, no Programa “Reconstruir la ciudad al servicio del hombre, “in” www.maritain.org.br, link artigos;
(9)-cf. Renato Rua de Almeida, Subsiste no Brasil o direito potestativo do empregador nas despedidas em massa ?, Revista LTr., São Paulo, ano. 73, 2009, págs. 391-393;
(10)-cf. Robert Alexy, Direitos fundamentais, Malheiros, São Paulo;
(11)-cf. Renato Rua de Almeida, Eficácia dos direitos fundamentais nas relações de trabalho, Revista LTr., ano 76, 2012, págs 647-650;
cf. Renato Rua de Almeida, Garantia do emprego: a nova noção da estabilidade no emprego à luz da interpretação do artigo 7º, inciso I, da Constituição Federal de 1988, Revista LTr. agosto de 2019, págs.903-907;
cf. Arion Sayão Romita, Direitos fundamentais nas relações de trabalho, LTr. Editora, São Paulo, 471 págs.
(12)-cf. Renato Rua de Almeida, Eficácia dos direitos fundamentais e seus impactos teóricos e práticos nas relações de trabalho à luz das questões trazidas pela Lei n. 13.467, de 13 de julho de 2017 sobre a reforma trabalhista, Revista Ltr., Ltr. Editora Ltda., São Paulo, agosto de 2017, págs.909-914;
(13)-cf. Michel Villey, Filosofia do direito. Definições e fins do direito, Atlas, São Paulo, Coleção universitária de ciências humanas, 174 págs.;
(14)-cf. Jorge Miranda, Constituição e Cidadania, Coimbra Editora, Coimbra, 517 págs.;
(15)-cf. Renato Rua de Almeida, Medida provisória nº 936, de 1º de abril de 2020, de 2/4/2020, “in” http/www.andt.org.br/acadêmicos/renato-rua-de-almeida;
(16)-cf. Renato Rua de Almeida, Artigo 2º da MP n. 927 de 2020, que dispõe sobre medidas trabalhistas para o enfrentamento do estado de calamidade pública e de emergência de saúde pública decorrente do novo coronavírus (Covid 19), de 13/4/2020, “in” http/www.andt.org.br/academicos/renato-rua-de-almeida